A escolha e sucessiva ocupação da nossa região por grupos humanos não terá sido obra do acaso. Deveu-se, seguramente e numa
primeira fase, a questões de ordem natural, designadamente ao seu
clima favorável e à disponibilidade, variedade e facilidade de acesso a
recursos básicos à subsistência, como a água, a recolha de plantas e frutos silvestres,
a caça, a pesca e... o marisqueio!
As primeiras comunidades nómadas, os
primitivos caçadores-recolectores e marisqueiros
que por aqui se foram instalando, ainda no Paleolítico
1, encontram-se sobretudo documentadas
em inúmeros sítios arqueológicos denominados de “concheiros”. Assinalados tendencialmente no litoral ocidental,
caracterizam-se como perecíveis acampamentos de curta duração, naturalmente
sazonais (de Primavera e Verão), dedicados à exploração do marisco da costa
futuramente “vicentina”, sendo identificáveis pela observação de significativas
acumulações de restos de conchas de bivalves, de moluscos e de crustáceos marinhos,
nomeadamente mexilhão, amêijoa, berbigão, ostras, lapas, búzios, burgaus e,
claro, os “nossos” percebes!
Estes depósitos são datáveis pela
estratigrafia 2
geológica onde se incluem, pela análise radiocarbónica de conchas e carvões e
pela análise relativa dos artefactos neles contidos: instrumentos talhados sobre
seixos (“burgaus”), lascados sobre quartzo, quartzito e no abundante grauvaque
regional, resultando nos “machados mirenses”, e, também, utensilagem produzida sobre
sílex.
Um dos mais significativos concheiros estudados na região será o do Castelejo (Vila do Bispo). Situado numa
abrigada plataforma de fundo de vale, sobre a margem direita do Barranco de A
de Marinho, que desagua na praia do Castelejo, este concheiro foi alvo de
escavações arqueológicas realizadas por Carlos Tavares da Silva, entre 1985 e
1989 (Gomes e Silva, 1987; Silva e Soares, 1997; Soares e Silva 2003, 2004). Os trabalhos ali realizados, e a
subsequente investigação, permitiram registar um sazonal sítio de habitat, com uma sequência
de ocupação que abrange um período entre a fase final do Paleolítico, o
Mesolítico 3 e os inícios do Neolítico, com
datações radiocarbónicas 4 entre os 8.700 e os 6.450 anos antes do presente 5.
Também foi possível individualizar diversas estruturas de combustão 6,
alguns artefactos produzidos em pedra regional e um recipiente cerâmico do
Neolítico Antigo, destinado ao armazenamento de alimentos. Além dos abundantes
vestígios de invertebrados marinhos, entre os quais dominam os mexilhões, as
lapas e os percebes (mas também o burgau e o búzio púrpura), foram ainda registadas
espinhas de peixe e restos de coelho.
A ocupação sazonal e de curta duração deste sítio poderá ser explicada
pela abundância e variedade dos mariscos daquela costa, mas também por outras
actividades como a extracção de sílex (Silva
e Soares, 1997), protagonizada por elementos de um grupo mais vasto, estacionado num presumível acampamento base regional
(Soares, 1996).
O fenómeno dos concheiros não foi exclusivo
da Pré-história Antiga. No nosso Concelho, foram identificados vários concheiros
dos últimos tempos do Paleolítico e do Mesolítico (na transição para o Período
Neolítico), mas também concheiros neolíticos e de Época Romana, Medieval e
Moderna, atestando uma admirável continuidade na exploração dos variados e
excelentes recursos marinhos da nossa frutuosa costa.
O Paleolítico significa uma longa etapa evolutiva, durante a qual os
primeiros hominídeos iniciaram uma épica diáspora a partir das nossas genéticas
origens, no “berço” de África. Enquanto espécie, somos herdeiros de uma
remotíssima linhagem, cujos traços culturais são comprováveis por artefactos
produzidos há mais de 2.5 milhões de anos.
Este amplo período foi marcado por uma extrema instabilidade climática
e ambiental, intercalada por ciclos glaciais (gelados) e interglaciais
(temperados), determinantes para os paulatinos ritmos da evolução e dispersão dos
primordiais grupos humanos. De referir que os ciclos glaciais produziram marcadas
descidas no nível dos mares, sendo que, há cerca de 18.000 anos, no último pico
glacial, terá ocorrido um recuo máximo da linha de costa, que no litoral sul
algarvio rondou os 20 km, recuperando e estabilizando, no nível actual, há
cerca de 3.000 anos (Dias et al., 1997; Dias et al., 2000; Dias, 2004).
Nesta conjuntura ambiental, em que quase toda a superfície do
continente europeu se encontrava sob gelo, as espécies animais e vegetais, menos tolerantes ao rigor das baixas temperaturas, foram migrando para sul, encontrando na
Península Ibérica um clima menos gelado e mais acolhedor, um último reduto de
sobrevivência, sendo substituídas no restante território europeu por outras,
adaptadas a climas mais frios. O mesmo terá acontecido com os primeiros grupos humanos que aqui chegaram
e que por aqui gradualmente se fixaram.
1 “Paleolítico”
significa “Pedra Antiga”, do grego palaiós = antigo + lithos
= pedra.
2 O método estratigráfico, associado à “lei
da sobreposição temporal” e ao “princípio da horizontalidade original”,
constitui um dos pilares fundamentais da investigação arqueológica. A
observação, registo e leitura da formação, composição e sobreposição de
estratos (ou camadas) em depósitos geológicos e arqueológicos, permite
reconhecer sequências temporais datáveis por fósseis (no caso da Geologia) e
por artefactos (no caso da Arqueologia) inclusos nas estratigrafias.
3 “Mesolítico” significa “Idade
Média da Pedra”, do grego mesos = médio + lithos
= pedra; marcando um
período de transição entre o Paleolítico e o Neolítico.
4 O
radiocarbono será o mais utilizado e preciso método absoluto de datação em
arqueologia, tendo por base a leitura do isótopo de Carbono14 presente
nos materiais orgânicos.
5 “Antes do Presente” é uma
designação associada a datações
absolutas obtidas por radiocarbono, tomando como referência o ano de 1950.
Surge na bibliografia científica com a sigla “BP” (Before
Present – Antes do Presente).
6 As
estruturas de combustão (ou lareiras) permitem, a partir dos restos orgânicos
carbonizados nelas contidos, obter datações absolutas de sítios habitacionais.
Ainda hoje, o fogo é essencial para cozinhar alimentos e para gerar calor e
conforto em qualquer habitação. Nesta lógica se podem explicar dois sinónimos
para a palavra “casa”: lar (lareira) e fogo.