Feliz quem tem uma PEDRA em SAGRES

Palavras-chave | Keywords

"Boca do Rio" "Ermida da Guadalupe" "Farol de São Vicente" "Fauna e Flora" "Fortaleza de Sagres" "Gentes & Paisagens" "Gentes de Vila do Bispo" "Geologia e Paleontologia" "História do Mês" "Martinhal" "Menires de Vila do Bispo" "Paisagens de Vila do Bispo" "Tales from the Past" "Vale de Boi" 3D Abrigo Antiguidade Clássica Apicultura ArqueoAstronomia Arqueologia Experimental Arqueologia Industrial Arqueologia Pública Arqueologia Subaquática Arquitectura arte Arte Rupestre Artefactos Baleeira Barão de São Miguel Base de Dados Bibliografia biodiversidade Budens Burgau Calcolítico Carta Arqueológica de Vila do Bispo Cartografia Cetárias Cista CIVB-Centro de Interpretação de Vila do Bispo Complexo industrial Concheiro Conservação e Restauro Descobrimentos Divulgação Educação Patrimonial EPAC Escolas & Paisagens de Vila do Bispo Espeleo-Arqueologia Estacio da Veiga Estela-menir Etnografia Exposição Figueira Filme Forte Fotografia Geographia Grutas Homem de Neandertal Idade Contemporânea Idade do Bronze Idade do Ferro Idade Média Idade Moderna Iluminados Passeios Nocturnos Ingrina Islâmico Landscape marisqueio Medieval-Cristão Megalitismo menires Mesolítico Mirense mitos & lendas Moçarabe Moinhos Museologia Navegação Necrópole Neo-Calcolítico Neolítico Neolítico Antigo NIA-VB Paleolítico Património Edificado Património natural Património partilhado Pedralva Pesca Povoado Pré-história Proto-história Raposeira Recinto Megalítico/Cromeleque Referências RMA Romano Roteiro Sagrado Sagres Salema Santos Rocha São Vicente Seascape Toponímia Vila do Bispo Villa Romana
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Espólio Arqueológico da Boca do Rio | Centro de Interpretação de Vila do Bispo

Espólio arqueológico proveniente da Villa Romana da Boca do Rio (Budens), Centro de Interpretação de Vila do Bispo  maravilhosos fragmentos de uma remota História Regional...

Fragmentos de estuque com frescos pintados na 2.ª metade do séc. IV d.C.,
figurando personagens masculinas romanas
Fragmentos de estuque pintados na 2.ª metade do séc. IV d.C.,
figurando um cavalo com arreios com botões metálicos
Fragmentos de estuque com frescos pintados na 2.ª metade do séc. IV d.C.
Fragmentos de cerâmica romana importada da Gália
(séc. IV d.C)
Fragmento de disco de lucerna romana com figuração de Vitória,
deusa do panteão romano tradicionalmente representada com asas,
envergando uma túnica drapeada e ostentando na mão direita uma coroa de louros
Numismas (moedas) romanas do séc. IV d.C., 
sendo possível vislumbrar, num dos exemplares, uma figura humana de difícil interpretação
Corrente de elos em oito (bronze)
Fragmentos de alfinetes de cabelo em osso
Pregos e cavilhas em bronze
Haste de bronze perfurada,
eventualmente de "tonteira" para pesca de moluscos marinhos (polvo, choco e lula)
Fragmento de fateixa em bronze 
Conjunto de anzóis em bronze
Conjunto  de agulhas de rede de pesca em bronze
Pesos de rede
(em pedra e bronze)
Dolium - grande contentor cerâmico 

Fotografias de Ricardo Soares

Estacio da Veiga - Monumentaes Referências Archeologicas

Estacio da Veiga: a Carta Archeologica do Algarve, o Museu Archeologico do Algarve, as Antiguidades Monumentaes do Algarve e um “Programma para a instituição dos estudos archeologicos em Portugal”

Muito poderia ser dito acerca da vida e obra de Estacio da Veiga (1828-1891).
Acerca da sua biografia, a tarefa encontra-se justamente concretizada em diversos trabalhos, designadamente na mais extensa biografia até à data produzida sobre Estacio da Veiga, da autoria de sua bisneta, Maria Luísa Estácio da Veiga Pereira, dada à estampa em 1981 (PEREIRA, 1981); e no amplo artigo Estácio da Veiga e a Arqueologia - um percurso científico no Portugal oitocentista, publicado em 2006 por João Luís Cardoso, produzido com base no repositório documental do volumoso arquivo pessoal de Estacio da Veiga, à guarda do Museu Nacional de Arqueologia desde 1893 (CARDOSO, 2006). De referir, também, o 4.º Encontro de Arqueologia do Algarve - Percursos de Estácio da Veiga, organizado pela Câmara Municipal de Silves em Novembro de 2006. Sendo inteiramente dedicado ao legado de Estacio da Veiga, as respectivas actas foram publicadas em 2007, na XELB - Revista de Arqueologia, Arte, Etnologia e História, n.º 7, resultando num valioso acervo informativo sobre os contributos deste extraordinário investigador.
Relativamente à sua obra pioneira, inédita, extensa, exemplarmente completa e plena de actualidade, interessa-nos, no contexto do presente trabalho, isolar e destacar o seu inestimável e inspirador contributo no âmbito do território concelhio de Vila do Bispo.
Sebastião Philippes Martins Estacio da Veiga, “Moço Fidalgo” nascido em Tavira em 1828, no seio de uma nobre família rural, “socio correspondente da academia real das sciencias e da sociedade de geographia de Lisboa, do instituto e da sociedade broteriana de Coimbra, do imperial instituto archeologico germanico de Roma, da sociedade franceza de archelogia, da real academia da historia de Madrid, da sociedade economica de Malaga, da academia de archeologia da Belgica, do instituto archeologico e geographico pernambucano, collector e fundador do museu archeologico do Algarve” (VEIGA, 1886), revelou-se, nos finais do século XIX, como uma das maiores referências da história da Arqueologia Portuguesa, legando-nos uma extensa e meritória obra, plena de actualidade, mesmo para os contemporâneos padrões científicos e intelectuais.
Engenheiro de Minas formado na Escola Politécnica, em Lisboa, cursou uma série de disciplinas, designadamente Geologia, Paleontologia, Mineralogia, Topografia e Geodésia, uma diversificada paleta de áreas científicas que lhe conferiram especiais aptidões para os trabalhos de campo que mais tarde viria a desenvolver no âmbito da Arqueologia.
Na vanguarda do intelectual panorama europeu da época, o seu incontornável contributo, enquanto pioneiro da científica e sistemática investigação arqueológica algarvia, foi inédito, completo e exemplar, quer a nível regional como a nível nacional.
Em Março de 1877, no seguimento da incumbência do Governo de então, dá início aos trabalhos da Carta Archeologica do Algarve, “talvez, a mais notável iniciativa no domínio da Arqueologia até hoje empreendida em Portugal (...). A desproporção da empresa e dos resultados obtidos, face à fragilidade de recursos humanos e financeiros alocados, ainda mais releva o mérito da obra” (CARDOSO, 2006, p. 295).
Assim, entre 13 Março de 1877 e os finais do Outono de 1878, Estacio percorre o Algarve de “lés-a-lés”, numa incansável empreitada. Para o efeito, a sua metodologia baseou-se, numa primeira fase, numa forte abordagem pessoal de contacto directo com as gentes locais, por vezes intermediada por informadores e colectores de sua confiança, granjeando o apoio de diversas pessoas ilustres, sensíveis e interessadas pela história local e pelo coleccionismo de antiguidades. Numa segunda fase, depois de filtrado o potencial informativo das referências obtidas por informação oral, deslocou-se a alguns dos supostos locais de proveniência dos materiais arqueológicos, entretanto doados, comprados e integrados na sua colecção pessoal, para confirmação das presumíveis realidades arqueológicas – não me foi possivel emprehender minuciosas pesquizas em todos os pontos assignalados com apparentes indicios de occupação antiga, e muito menos empregar continuamente o systema de procurar por tentativa o que a terra occultava aos olhos do observador insciente” (VEIGA, 1886, p. 20). Em situações excepcionais, realizou mesmo trabalhos arqueológicos de escavação, exemplarmente documentados por descrições, desenhos e plantas, por exemplo, e como veremos mais adiante, no sítio romano da Boca do Rio (Budens/Vila do Bispo).
Consequentemente, em 1880, apresenta ao Congresso de Anthropologia e de Archeologia Prehistorica, reunido em Lisboa, os resultados preliminares das suas campanhas algarvias – “Aos sabios, que forem sinceramente bem intencionados, bastará olharem com alguma attenção para o primeiro trabalho que n’este genero se publica em Portugal, representando as antiguidades prehistoricas até hoje verificadas n’uma provincia inteira, para comprehenderem quantos descobrimentos significa, quão aturadas fadigas e grandes difficuldades me foi mister empregar e vencer para poder agora abandonal-o á luz da publicidade” (VEIGA, 1886, p. 28).
No mesmo ano (1880) funda em Lisboa, na Academia Real das Belas Artes, o Museu Archeologico do Algarve. Depois de gorada a prioritária intenção de uma sede provincial no Algarve, no extinto Convento de São Francisco, em Faro, e de “sabotadas” as diligências para o sediar na Academia Real das Ciências de Lisboa, passando por um processo um tanto “obscuro” e à margem do conhecimento e das intenções do próprio Estacio da Veiga, o “seu museu” é instituído em 1880, por despacho do Ministro do Reino, conforme Ofício outorgado pelo então Director Geral da Instrução Pública, que formalmente o incumbe “de classificar e catalogar por modo que possam ser expostos ao publico os Monumentos Archeologicos vindos ultimamente do Algarve, e por V. Ex.ª descobertos e colleccionados para a comprovação da Carta Archeologica d’aquella Província” (CARDOSO, 2006, p. 346-362).
Foi assim que no dia 26 de Setembro de 1880, após uma esforçada e dedicada maratona, Estacio da Veiga abre ao público as portas do Museu, a tempo de ser visitado pelos ilustres congressistas reunidos em Lisboa a propósito do Congresso de Anthropologia e de Archeologia Prehistorica, entre os quais se destacavam o arqueólogo francês Émile Cartailhac e o antropólogo alemão Rudolph Virchow.
Durante o efémero período de oito meses (1880-1881), este museu – o unico museu que em Portugal foi methodicamente organisado para representar por epochas distinctas e em ordem geographica as antiguidades de uma provincia inteira” (VEIGA, 1886, p. XI) apresentou os exemplares mais representativos do acervo artefactual colectado nos trabalhos de campo da Carta Archeologica do Algarve, sendo entretanto“transferido e arrecadado a instancias do inspector da academia de bellas artes sob o pretexto de carecer do espaço que occupava!” (VEIGA, 1886, p. XII); “n’umas casas inferiores da academia de bellas artes e n’um pateo infecto e sombrio, que foi cemiterio do ex-convento de S. Francisco, onde tambem ficou sepultado; o que por emquanto relato sem os devidos commentarios, porque o facto basta para mostrar o lamentoso atrazamento em que este genero de estudos se acha ainda n’este paiz!” (VEIGA, 1886, p. 11).
Em resposta a esta inopinada falta de estima pelos seus esforços, projecto e pelo próprio conjunto artefactual, Estacio da Veiga incumbe o seu conterrâneo, amigo e colaborador, Judice dos Santos, de remover e remeter para o Algarve todo o espólio museológico (VEIGA, 1886, p. XII).
Por fim, este significativo acervo acaba por transitar para o então denominado Museu Ethografico Português, em Lisboa, fundado em 1893 por José Leite de Vasconcelos (1858-1941) – o actual Museu Nacional de Arqueologia (Mosteiro dos Jerónimos). A este propósito, Leite de Vasconcelos, em carta dirigida em 1894 a Martins Sarmento, informa ter conseguido que o Governo adquirisse o espólio arqueológico do Museu Acheologico do Algarve“fui ao Algarve em Janeiro buscá-lo, e já todo ele está debaixo da minha guarda no Museu Etnographico” (FABIÃO, 2008, p. 115).
Este tratou-se de um episódio final ao qual Estacio da Veiga, entretanto falecido em 1891, conceptualmente e declaradamente se opôs em vida, advogando a descentralização dos serviços ligados à Arqueologia, através da criação de seis circunscrições no Reino e a consequente oposição museus provinciais/regionais vs Museu Nacional.
Recuando um pouco no tempo, ao ano de 1882, Estacio funda, na cidade de Faro, o Instituto Archeologico do Algarve, na sua intenção, o destino final de todo o espólio colectado na Carta Archeologica do Algarve, porque sómente alli poderá o museu ser conservado intacto; só alli poderá manter-se congruente aos fins da sua especial instituição; só alli poderá progredir, porque as principaes collecções particulares, que já são muitas e valiosas em toda a provincia, contribuirão para o seu enriquecimento; só alli se poderão addicionar-lhe os monumentos que com frequencia estão apparecendo em quasi todas as circumscripções municipaes, e porque só alli reassumirá a feição geographica que lhe compete, será mais sensivel a sua significação e abrirá um novo horisonte ao progresso da instrucção superior, de que tanto carece este territorio, onde não faltam talentos e illustrações para honrarem o paiz, tomando o logar que lhes compete nos grandes certames scientificos proprios d’este século” (VEIGA, 1886, p. 15-16).
Em 1886, cumprindo o contrato que firmou com o Governo de então, em 29 de Maio de 1879, Estacio publica os resultados das suas investigações no primeiro volume das suas Antiguidades Monumentaes do Algarve - tempos prehistoricos, seguindo-se em 1887, 1889 e 1891 os volumes II, III e IV, respectivamente (VEIGA, 1886; 1887; 1889; 1891), no conjunto representando o periodo neolithico, a transição deste periodo para a idade do bronze, esta idade e a idade do ferro”. Em 2005, no âmbito das iniciativas Faro - Capital Nacional da Cultura, estes quatro preciosos volumes foram em boa hora reeditados pela Universidade do Algarve, em versão fac-simile e com um estudo introdutório da autoria de Teresa Júdice Gamito (VEIGA, 2005).
Postumamente, em 1904, é publicada, nas páginas de O Archeologo Português, a 1.ª parte do tripartido Capítulo V das Antiguidades Monumentaes do Algarve, desta feita acerca dos tempos historicos (VEIGA, 1904; 1905; 1910). Ainda incompleto, este Volume V terá sido enviado pelo próprio Estacio da Veiga para a Direcção Geral da Instrução Pública, sendo posteriormente resgatado pelo director do então designado Museu Etnográfico Português e editor da revista O Archeologo Português, José Leite de Vasconcelos (CARDOSO, 2006, p. 294). Muito recentemente, em 2006, o Volume V foi justamente reeditado e publicado na íntegra pelo Museu Nacional de Arqueologia e pela Câmara Municipal de Silves (VEIGA, 2006).
Na leitura dos cinco volumes das “Antiguidades” transparece a inovação da prática arqueológica, a exemplar minúcia e rigor dos trabalhos de campo e dos respectivos levantamentos, e o alcance de um ciclo completo nos estudos de gabinete, com o processamento conceptual dos dados obtidos, na elaboração e comunicação de um discurso “final” e na crítica proposição de futuras iniciativas de complementaridade e continuidade.
Em jeito de introdução, sobre a organização formal e editorial da obra, Estacio da Veiga abre o primeiro volume das Antiguidades Monumentais do Algarve com a seguinte “advertência” (VEIGA, 1886, p. V-VI):

Advertencia
«No programma geral d’esta obra estavam destinados todos os assumptos concernentes ao periodo neolithico para constituirem o primeiro volume, suppondo que não excederiam o numero de paginas que cada livro deve ter, em vista da terceira condição1 do contracto que o governo commigo celebrou para eu descrever em cinco ou seis volumes as Antiguidades monumentaes do Algarve; e, com effeito, se me houvesse limitado aos descobrimentos provenientes do reconhecimento que me foi incumbido para a elaboração da carta archeologica d’aquella provincia, o calculo não falharia.
Succedendo porém haver noticia de terem posteriormente apparecido outras muitas antiguidades, que deixavam perceber a existencia de importantes estações não ainda conhecidas, determinou o governo que fôssem estudadas, a fim de serem symbolisadas na carta archeologica e descriptas na obra contractada.
Feita uma exploração complementar, ganhou a carta mais cincoenta e sete logares com antiguidades prehistoricas; mas ainda assim pensei que accrescentando umas cem paginas ás que o volume devêra conter, poderia abrangel-as, e com este intuito começou o trabalho da composição.
Quando, porém, estando já impressas mais de quatrocentas paginas, se calculou faltarem ainda umas duzentas, e que numerosas estampas tinham de ser addicionadas, notou-se que o livro attingiria extraordinaria grossura, de que resultariam diversos e simultaneos inconvenientes; pois ficaria assim em desarmoniosa desproporção com o formato; a brochura seria assaz trabalhosa, demorada, de muito dcspendio e pouco consistente; subordinado a uma taxa bastante elevada, que de certo impediria o consumo; seria sensivelmente incommodo para a leitura; estragar-se-hia com facilidade, obrigando logo o possuidor á inevitavel despeza da encadernação; e o peso, que ficaria tendo, causaria muito embaraço e avultado custo para poder ser transportado por via postal.
Todas estas considerações, praticamente suscitadas pelo desenvolvimento do livro, logo que chegou aos dois terços da sua composição typographica, me obrigaram a reduzil-o, sem comtudo interromper ou alterar a numeração ordinal dos capitulos e da paginação, emquanto não chegasse ao seu termo final o estudo respectivo a todos os caracteristicos pertencentes ao periodo neolithico, os quaes forçadamente tiveram de ser repartidos, e concluidos no segundo volume, já em grande parte impresso para em breve tempo ser levado á publicidade.»

Nas páginas seguintes, segue-se o prefácio inaugural das Antiguidades Monumentaes do Algarve, intitulado Nenhum prefacio, poucas explicações e varios agradecimentos(VEIGA, 1886, p. VII-XVI). Trata-se de um interessantíssimo texto que retrata a conjuntura arqueológica da época (em boa verdade não muito distante da realidade actual) e as dificuldades que o autor confrontou e teve de contornar na execução da Carta Archeologica do Algarve e na própria impressão tipográfica das “Antiguidades”, denotando já algum desencantamento e sentida falta de apoio, por parte das instituições tutelares, para a aplicação do seu ambicioso programa arqueológico à escala nacional.
Um texto no qual nos são transmitidos, na primeira pessoa e com grande humildade, os frustrados objectivos que presidiram à efémera instituição do Museu Archeologico do Algarve (1880-1881), além de uma série de reconhecimentos e agradecimentos às pessoas que directa e indirectamente contribuíram para a realização da sua ambiciosa empresa arqueológica Algarvia.

Nenhum prefacio,
poucas explicações e varios agradecimentos
«O prefacio, que competia a este livro, ja não póde ter cabimento, porque foi escripto n’uma conjunctura em que algumas illusões animavam ainda os intuitos verdadeiramente bons e generosos com que desejei empenhar os meus mais decididos esforços para firmar um programma, que, em razão da sua proficuidade, regesse methodicamente o descobrimento, o estudo e a representação do riquissimo thesouro, sempre mal comprehendido e mal estimado, das mui complexas antiguidades paleoethnologicas e historicas, que todos os entendimentos illustrados deviam presumir que existisse largamente ramificado em todo este reino; e, com effeito, aquellas illusões, emquanto não fui compellido a transferir o museu archeologico do Algarve para uma apertada o sombria arrecadação da academia do bellas artes, não deixavam de ser alimentadas com algum fundamento, visto que até então nunca me tinham sido recusados os auxilios de que carecia aquella nascente e mui esperançosa instituição.
As causas, porém, que promoveram o encerramento do museu, produziram outros adversos resultados, que aqui me abstenho de relatar, comquanto indispensavelmente julgue dever declarar, que o retardamento n’esta publicação não me póde ser attribuido, porque tendo o governo contractado a primeira edição da minha obra em cinco ou seis volumes, e obrigando-se por uma escriptura de contracto a fornecer para cada um as respectivas estampas, sómente em 30 de março de 1886 acabei de receber as que havia muito tempo impediam a impressão d’este primeiro tomo; o que me levou, para as intercalar na ordem geral dos assumptos, a alterar em grande parte o manuscripto que desde agosto de 1885, embora por este motivo forçadamente incompleto, já tinha apresentado; e se a composição não começou logo, mas muitos mezes depois, foi por haver numerosos trabalhos accumulados nas officinas typographicas da imprensa nacional, e não por falta de texto preparado; pois até ao fim do quarto capitulo não havia estampas.
Dadas estas explicações a todas as pessoas que vagamente me tenham julgado em falta, reservo as que por emquanto ficam em silencio para um escripto de outra indole, se a tanto for obrigado.
Antes porém de dar logar n’este livro ao primeiro capitulo, cumpre-me registrar algumas palavras de respeitosa lembrança, de que me confesso devedor a muitas pessoas ainda existentes e á memoria de outras já fallecidas, que me honraram com o seu efficaz adjutorio desde que a meu cargo tomei o estudo geral das antiguidades do Algarve.
N’estes termos e com estes intuitos, cabe a primasia ao governo que em 1877, certamente por informações ou conceitos de que eu não era merecedor, me preferiu entre os socios da academia real das sciencias de Lisboa para a elaboração da carta archeologica do Algarve, havendo na academia sapientes archeologos, que muito melhor teriam sabido corresponder a um tão difficil emprehendimento.
A este respeito posso afoutamente declarar, que não me offereci, não me fiz lembrado, e que não foi sem grande hesitação que annui ao convite do governo, como se me fôra dado pressagiar a impagavel perda da minha anterior traquillidade e as ruinas que um mesquinho antagonismo desde então me foi preparando.
Ao actual sr. ministro do reino, que, sendo-o igualmente em 1880, se dignou incumbir-me da organisação do museu archeologico do Algarve, porque o julgou tão indispensavel para a comprovação authentica da carta archeologica, como de publica utilidade scientifica, envio o meu mais respeitoso agradecimento, por haver-me confiado a direcção de um serviço sobremaneira importante e honroso, sentindo porém que s. ex.ª não tenha ainda podido examinar a verdadeira e assaz injustificavel causa que originou o encerramento d’esse museu, para o restaurar agora, que póde ser em maior escala ampliado e enriquecido com preciosas collecções ultimamente organisadas, e mantel-o com os mesmos fundamentos de reconhecido prestimo que o levaram a determinar a sua fundação.
Com mui valiosa cooperação concorreu o sr. conselheiro Antonio Maria de Amorim, director geral de instrucção publica, tanto para eu poder levar a effeito os trabalhos respectivos á carta archeologica, como para os da organisação do museu, e ainda posteriormente para os da exploração complementar que fiz em 1882.
Ficando pois todos estes serviços, e bem assim os que são relativos á publicação d’esta obra, subordinados á sua superior direcção, cabe-me o dever de manifestar-lhe o meu reconhecimento pela benevolencia com que os tem auxiliado, esperando porém que queira empregar a sua mais vigorosa iniciativa, como ao seu cargo compete, para que o museu archeologico do Algarve, onde estão depositadas as minhas antigas collecções e devem estar outras muitas ainda ignoradas, seja promptamente reorganisado, sem dependencia de pretenciosas intrusões, a fim de que readquira o valor scientifico, que ninguem lhe póde negar, e a consideração com que taes instituições estão sendo altamente estimadas e mantidas nos paizes de mais adiantada civilisação.
Foi assaz melindrosa a situação em que me achei no Algarve, tendo a meu cargo reconhecer as antiguidades que deviam ser symbolisadas na carta archeologica, pela maior parte concentradas em terrenos de dominio particular. Era pois mister solicitar licença aos proprietarios para por meio de excavações chegar a classifical-as.
Numerosas licenças foram pedidas e nenhuma recusada. Não tendo o direito de lançar mão dos monumentos descobertos em propriedade alheia, mas receando que ficassem dispersos e em risco inevitavel de se perderem, a todos os proprietarios propuz officiosamente tomar eu conta dos que fôssem achados para com elles organisar um museu, que ficasse representando as antiguidades da nossa bella provincia. A idéa agradou geralmente, porque era o inicio fundamental de uma instituição util e honrosa para o Algarve.
Alguns parentes e amigos, querendo porém levar os seus obsequios a um maior grau de primor, preferiram offerecer para as minhas collecções particulares numerosos monumentos e artefactos que tinham antecedentemente encontrado nos seus trabalhos ruraes, e d’este modo, assim como comprando todos os objectos antigos que me eram apresentados, consegui dar ás minhas antigas collecções grande desenvolvimento.
Ricos e pobres me receberam sempre com a mais mimosa affabilidade, e por isso não acho termos bastante significativos para testemunhar a esses meus prezadissimos conterraneos os agradecimentos de que me considero devedor á bizarria e cavalheirosa franqueza com que se dignaram tratar-me. A todos fiquei devendo muito favor, e se não aggrego aqui a extensa relação de tantos nomes sympathicos, é porque a tenho n’esta occasião a muita distancia das minhas vistas. Nos diversos capitulos d’este livro citarei porém varios nomes, que julgo associados a este trabalho pela elevada significação dos serviços auxiliares que representam.
Não posso deixar em esquecimento as attenções e a coadjuvação que encontrei em todas as auctoridades nas diversas occasiões em que necessitei recorrer á sua intervenção, assim como os espontaneos obsequios com que numerosas pessoas particulares se dignaram receber-me em varias terras do meu transito.
Desde o começo dos trabalhos da exploração até uma data posterior á do encerramento do museu archeologico do Algarve, alguns periodicos politicos e litterarios quizeram distinguir-me com a sua benevolencia, engrandecendo os meus modestos serviços.
Longe de poder corresponder condignamente a esses benemeritos do progresso, porque nunca chegam a ser sufficientemente retribuidas estas dividas honrosissimas, dividas que crescem com o decorrer dos tempos, sendo animadoras companheiras da vida e titulos que sempre ficam ennobrecendo o devedor, compete-me comtudo, endereçar aos auctores de tantos conceitos primorosos, embora immerecidos, o meu mais confraternal protesto de grato reconhecimento, deixando aqui estas poucas palavras para o manterem e memorarem.
Em igual obrigação me julgo tambem para com alguns sabios estrangeiros, signatarios de valiosos escriptos, em que o museu do Algarve e o meu humilde nome ficaram lembrados. Refiro-me principalmente aos srs. Virchow, Cartailhac, de Laurière, de Ceuleneer e Henri Martin, auctores dos relatorios respectivos aos trabalhos do congresso de anthropologia e de archeologia prehistorica, celebrado em Lisboa no mez de setembro de 1880, e bem assim aos preciosos escriptos, que o dr. Emilio Hübner tem publicado relativamente aos monumentos com que organisei a secção epigraphica.
Ás pessoas que não visitaram o museu e áquellas que, podendo e devendo promover a sua reorganisação, agora muito mais ampla, o têem deixado ha tantos annos em lamentavel abandono, seja-me permittido solicitar a leitura d’esses relatorios, não para que tomem em consideração os mal cabidos louvores de que fiquei devedor á cortezia d’esses respeitaveis cultores e propagadores da sciencia, mas para que não levem a sua negligencia até o ponto de desprezarem o unico museu que em Portugal foi methodicamente organisado para representar por epochas distinctas e em ordem geographica as antiguidades de uma provincia inteira. Dando pois o maior apreço a esses tilulos de subida importancia com que ficou memorado o museu por mim iustituido, compete-me n’este logar agradecel-os a esses sabios distinctissimos, que tanto me têem honrado.
Ao sr. Cartailhac devo ainda muito mais, porque, parecendo não ter julgado sufficientes os benevolos louvores com que me havia distinguido no relatorio que dirigiu ao ministerio de instrucção publica de França, quiz de novo confirmar e desenvolver as suas anteriores asserções no esplendido livro intitulado Les âges préhistoriques de l’Espagne et du Portugal, onde representa, descreve e recommenda numerosos caracteristicos das antiguidades paleoethnologicas mais typicas do museu do Algarve, contrastando por este modo com o systematico desfavor dos que deviam engrandecer, em vez de amesquinhar, a incontestavel significação scientifica d’aquelle conjuncto de padrões monumentaes.
Envio portanto ao sr. Cartailhac as affirmações do meu mais expressivo agradecimento.
Em varios capitulos d’este livro serei mui gostosamente obrigado a referir-me aos serviços com que fui auxiliado pelo meu mui prestadio conterraneo o sr. Joaquim José Judice dos Santos, mas não é demasiado lembral-os desde já!
Logo que o governo me incumbiu de organisar o museu, o sr. Judice dos Santos, a meu convite, enviou-me immediatamente as suas famosas collecções de instrumentos prehistoricos, acompanhadas de monumentos e numerosos objectos caracteristicos de varias nacionalidades historicas, que durante muitos annos tinha colligido no Algarve; com essas collecções, methodicamente distribuidas, representei muitos logares indicados na carta archeologica e augmentei os grupos destinados á comprovação das antiguidades de outros ainda necessitados de bons exemplares.
Emquanto o museu esteve aberto ao publico, o sr. Judice dos Santos reforçou as suas collecções, enviando-me os objectos que ía adquirindo, e sómente retirou tudo, tambem a meu pedido, na occasião em que o museu foi transferido e arrecadado a instancias do inspector da academia de bellas artes sob o pretexto de carecer do espaço que occupava!
Esta prova de confiança com que o sr. Judice dos Santos quiz distinguir-me, não posso eu deixar de lembrar com muita consideração, assim como o espontaneo offerecimento que me fez n’um artigo publicado no Districto de Faro, de poder de novo contar com as suas collecções logo que se trate da reorganização do museu.
Comquanto por vezes haja de referir-me n’este livro a outros bons conterraneos, a quem fiquei devedor de importantes obsequios, cumpre-me deixar já aqui indicados os nomes dos que mais contribuiram para o desenvolvimento das minhas collecções e com maior peculio para a organisação do museu.
Refiro-me aos cavalheiros, meus distinctos amigos, os srs. Manuel José de Sarrea Tavares Garfias e Torres (de Portimão), João Lucio Pereira (de Olhão), Sebastião Fernandes Estacio da Veiga (de Tavira), Antonio José Nunes da Gloria, prior de Bensafrim, e José da Costa Serrão, administrador do concelho de Aljezur.
Já não posso directamente agradecer á ex.ma sr.ª D. Maria do Carmo Estacio da Veiga e Tello uma selecta collecção de antiguidades historicas que reuniu na quinta da Torre de Ares, nem ao sr. Francisco Simão da Cunha a collecção, que me legou, de excelentes objectos antigos, descobertos na sua quinta do Arroio, perto de Tavira, porque aos que cessaram de existir, só me é licito registrar aqui um preito de respeitosa homenagem em sua memoria.
Compete-me tambem especialisar o nome do sr. Antonio de Paulo Serpa, habil empregado na direcção das obras publicas do districto de Faro, pela intelligencia e acerto com que desempenhou todos os trabalhos de que o incumbi entre Alcoutim e Albufeira, como bem o exemplificam as plantas que levantou e sobre todas as das ruinas de Ossonoba, e bem assim pela zelosa circumspecção com que dirigiu o serviço da contabilidade, mui intimamente aggregado ao da fiscalisação das explorações.
Para os trabalhos de plantas e desenhos muito concorreu igualmente o sr. João Tavares Bello, a quem confiei a direcção do desenho das estampas que no museu estão coordenadas em pasta reservada; e porque trato de recordar-me dos homens mais prestadios que me acompanharam nas minhas improbas excursões, não estranhem os meus leitores, que entre tantos nomes distinctos, inclua o de um pobre maritimo de Faro, José Viegas, porque foi elle o descobridor dos jazigos da idade do bronze no Monte da Zambujeira, perto de Castro Marim, um dos mais vigilantes apontadores dos meus trabalhos, e activo empregado de inexcedivel probidade; o que me deixou praticamente mais um exemplo de que a honra portugueza é ainda um dos mais immaculados brazões da classe popular d’esta nação.
Não posso deixar em esquecimento os serviços com que me auxiliou o sr. João Nunes Faria, canteiro que reside na freguesia de Santa Barbara de Nexe, a quem incumbi o descobrimento e compra de todos os objectos antigos que podesse adquirir, confiando na sua intelligente actividade e no conhecimento que tinha de todo o territorio da provincia. Foram muitos os logares com antiguidades que descobriu e numerosas as suas acquisições, mas as que obteve por obsequio de amigos e conhecidos, assim mesmo m’as transmittiu, não me permittindo a minima retribuição.
Os monumentos epigraphicos da Fonte de Apra, da Silveira e do Colmeal, assim como diversos objectos, que em seus logares serão descriptos, são offerecimentos seus para as minhas collecções. Comprazo-me pois de poder memorar n’estes termos a honradez e o prestimo de um modesto operario. Outros similhantes serviços me fez o sr. Antonio Marcellino Madeira, descobrindo muitos logares com apreciaveis antiguidades na freguezia de Cacella, onde vive modestamente do trabalho da sua lavoura, e adquirindo para as minhas collecções excellentes objectos antigos que existiam esparsos em poder de ignaros possuidores.
Em alguns museus de Lisboa achei auxilios mui valiosos.
No museu zoologico da escola polytechnica francamente me permittiu o sr. conselheiro Barbosa du Bocage os estudos que precisei fazer, e no museu mineralogico da mesma escola, onde me foi mister proceder á classificação de varios exemplares paleontologicos e de alguns instrumentos de pedra de mui difficil reconhecimento apparente, encontrei sempre os mais proficuos auxilios no seu sabio director, o sr. conselheiro Pereira da Costa, e no meritissimo naturalista adjunto, engenheiro de minas,
o sr. Jacintho Pedro Gomes, a quem a sciencia e aquella nobilissima escola devem já mui importantes serviços.
No museu da secção geologica tambem o seu distincto director, o sr. Nery Delgado, auctor de preciosas publicações scientificas, me permittiu observar os interessantes caracteristicos paleoethnologicos alli grupados sob a epigraphe de cada uma das estações exploradas, e tomei varias notas, que hão de ver-se desenvolvidas em alguns capitulos d’esta obra, sendo-me fornecidos apreciaveis esclarecimentos pelo sabio professor da universidade do Zurich, o sr. Paulo Choffat, a quem este paiz deve estudos e publicações da mais elevada importancia scientifica, e pelo mui festejado anthropologista, o sr. F. de Paula e Oliveira, ao passo que o insigne mineralogista, o sr. Alfredo Bensaude, procedia com delicada precisão á analyse chimica de alguns dos meus instrumentos de pedra, que á simples vista ninguem poderia classificar.
No museu do Carmo permittiu-me o seu presidente e fundador, o sr. Narciso da Silva, que copiasse tres placas de schisto gravadas, e de outras placas similhantes, existentes no museu de Evora, me mandou excellentes copias o sr. Gabriel Pereira, erudito archeologo, tão conhecido e estimado no paiz, como bem considerado no conceito de sabios estrangeiros.
Os apreciaveis resultados de valiosissimos estudos anthropologicos com que o sr. dr. Francisco Ferraz de Macedo muito me auxiliou, vão enumerados n’um capitulo do segundo volume.
Finalmente, um outro serviço importantissimo, de que carece o terceiro volume d’esta obra, embora não me fôsse ainda confiado, julgo poder esperar do meu illustradissimo conterraneo, o sr. João Bonança, auctor de uma obra de grandioso theor que vae começar a ser impressa sob o titulo de «Historia da Luzitania e da Iberia», com tão extraordinaria complexidade de assumptos altamente scientificos e litterarios, que me faz anciosamente desejar a sua publicidade. Refiro-me á interpretação dos celebres monumentos da necropole da Fonte Velha de Bensafrim com inscripções gravadas em caracteres paleographicos peninsulares, que até hoje ainda ninguem tinha decifrado, mas cujo alphabeto e processos de applicação á leitura d’esses venerandos padrões da prehistoria da peninsula o sr. João Bonança affirma ter descoberto á custa de muitos annos de aturado estudo e de uma perseverança inabalavel.
D’este modo, aquelles monumentos, que depositei no museu do Algarve, assim como toda a nummaria celtiberica, as rochas in situ e os artefactos que restam com taes legendas até agora mysteriosas, readquirirão a rediviva expressão de uma linguagem de ha muito emmudecida, que foi fallada e ficou escripta n’esta ultima plaga do Occidente desde tempos remotissimos, e passarão a ser os mais authenticos documentos historicos, geographicos, numismaticos e linguisticos, d’essas civilisações quasi ignoradas; e por isso aqui anticipo os tributos de admiração, que possam ser devidos a um tão corajoso operario do progresso.
Ficam reservados muitos mais nomes para serem inscriptos n’outras paginas d’esta obra, em que o meu, de todo o ponto humilde, melhor fôra que houvesse sido substituido por algum de mais abonada idoneidade.»

À imagem deste texto, e como veremos, a leitura das “Antiguidades” de Estacio da Veiga é impressionante pela própria escrita do autor, pela sua objectividade científica, pela qualidade gráfica das impressões, designadamente patente nas suas belíssimas estampas, e pela extensíssima bibliografia consultada e referida, relativa aos temas tratados, lida e traduzida criticamente, questionando opiniões e concepções de grandes vultos da ciência e do pensamento, portugueses e estrangeiros, seus contemporâneos e “clássicos”.
Uma “monumental” produção, organizada segundo as divisões administrativas algarvias (Concelhos e Freguesias) e segundo uma lógica geográfica de Oeste para Este, de Barlavento para Sotavento, de Sagres até ao Guadiana, abarcando diversas temáticas que confluem para o entendimento da paleoethnologia (Pré-história), numa vanguardista perspectiva de tendência interdisciplinar – nos dias de hoje, uma premissa fundamental da investigação arqueológica.
Estacio da Veiga lega-nos um inestimável acervo de informação arqueológica regional, associado à enumeração de um conjunto de fundamentais pressupostos metodológicos, reflexões teóricas e orientações científicas para a actividade arqueológica nacional, plenos de actualidade e que ainda hoje, com as necessárias adaptações, deveriam servir de guião para os nossos trabalhos.
A este propósito, no início do Volume IV das “Antiguidades”, publicado em 1891, Estacio propõe, em jeito de preâmbulo, um Programma para a instituição dos estudos archeologicos em Portugal (VEIGA, 1891, p. 1-16). Trata-se de texto deveras notável, pela objectividade e clareza com que o autor define as prioridades de actuação no âmbito da implementação e organização, em Portugal, de uma descentralizada investigação, inventariação, defesa e divulgação do património arqueológico, entregue em 1890 ao então Ministério da Instrução Publica (CARDOSO, 2006, p. 296). Em 1980, esta proposta programática é republicada por Victor S. Gonçalves (GONÇALVES, 1980), no âmbito do seu projecto de retoma da Carta Arqueológica do Algarve (GONÇALVES, 1979).
Esta exemplar peça merece aqui uma íntegra reprodução e inspiradora leitura, conforme a original e nobre ortografia da época (Prefácio do Vol. IV – VEIGA, 1891, p. 1-16):
Programma para a instituição
dos estudos archeologicos em Portugal

«Com este livro termino o trabalho respectivo á paleoethnologia do Algarve, em relação aos descobrimentos effeituados até este anno de 1890; o que não quer dizer que nada mais ficasse por estudar, porque, em meu entender, o que não me foi permittido descobrir, é muito mais do que o que symbolisei nas duas cartas actualmente publicadas.
Entretanto, é porém o Algarve o unico territorio em que foi possivel fazer-se um estudo methodico, embora não tão desenvolvido como conviria ter sido; pois, infelizmente, nas outras provincias quasi tudo jaz ignorado. D’este modo, póde-se dizer, que ainda n’esta data não ha uma noção geral das antiguidades nacionaes, nem mesmo a possibilidade pratica de se ordenar a sua catalogação scientifica; o que está lamentavelmente impedindo não poucos individuos, de comprovada competencia, de emprehender qualquer trabalho especial que tenha de ser subordinado a um não interrompido seguimento ethnographico, e collocando este paiz na misera condição de permanecer estacionario em numerosos ramos de conhecimentos humanos perante as nações que caminham na vanguarda do progresso social.
Esta injustificavel falta, geralmente sentida por todos os entendimentos que sabem comprehendel-a, não póde porém ser supprida por uns planos, tão vagos como incompletos, que ahi se hão visto emittidos com o directo proposito de se tratar da instituição de um grande museu nacional n’esta capital, composto de uma infinidade de elementos heterogeneos de todas as epochas e proveniencias, porque mui parcamente cada um dos seus variadíssimos grupos poderia corresponder a um qualquer estudo especial e systematico, como bem se deve conceber. Não me conformando, porém, com taes planos de immoderada centralisação, cujo resultado pratico seria a deslocação perniciosissima dos monumentos que devem servir de guia ao descobrimento dos vestigios, ainda occultos, correspondentes a cada phase das civilisações que nos precederam, que é o que mais deve interessar-nos, porque antes de se ter chegado a este conseguimento, nunca haverá sufficientes e bem ordenados fundamentos para se poder escrever a historia d’este territorio; e considerando, emfim, que este devêra ser o pensamento preferido, porque da sua realisação resultaria o conhecimento geral das antiguidades d’este solo, e d’este conhecimento uma serie de trabalhos de superior importancia, tratei de reviver um antigo programma, que a largos traços havia enunciado nas primeiras paginas do meu livro das Antiguidades de Mertola, logo que vi decretada a instituição de um ministerio de instrucção publica e bellas artes, e d’este modo enviei ao respectivo ministro, o sr. conselheiro João Arroyo, a seguinte representação e o programma, que julguei e julgo dever-se adoptar para a instituição dos estudos archeologicos em todo o reino.
O referido sr. ministro mostrou, porém, não ter querido honrar com a sua attenção a minha proposta; mas, sendo possivel que algum seu successor possa comprehendel-a e adopta-la, aqui fica textualmente registrada.
Encarregado, ha muitos annos dos estudos archeologicos do Algarve, nunca perdi de vista o programma que vagamente esbocei na minha memoria das Antiguidades de Mertola, impressa em 1880, para que taes estudos, sob o mesmo systema que estabeleci, fôssem extensivos a todo o continente do reino, porque assim, perante as exigencias da sciencia moderna, proclamadas por todos os paizes do mais alumiado entendimento, poderia esta nação, com os seus opulentos thesouros archeologicos methodicamente organisados, ministrar a essa sciencia que se propõe pôr por obra a historia da humanidade e do trabalho, as comprovações criticas mais definitivas da nunca interrompida população que teve este privilegiado territorio desde remotas idades geológicas até o alvorecer dos tempos historicos e das suecessivas phases de civilisação por que fôram passando essas sociedades que nos precedem.
D’este modo a nação portugueza, que tão amplamente levou ás mais longinquas regiões do mundo os seus ensinamentos, quando as que desde então fôram aprendendo a engrandecer-se, apenas figuravam nos mappas geographicos modestamente limitadas ao sólo do seu nascimento, daria novo testemunho dos seus um tanto deslembrados meritos, mostrando haver comprehendido ser a sciencia a mais poderosa alavanca que póde levar as nações decadentes, ou ainda incultas, a nivelarem-se com o valor intellectual dos maiores potentados, a força mais vigorosa que preside aos destinos dos povos, preparando-lhes o presente e abrindo-lhes os horisontes do futuro, e a luz que esclarece e dirige todas as funcções da vida social, quando esparge a instrucção correspondente a cada classe ou categoria das que no seu conjuncto compõem as populações.
Não teve, porém, o minimo acolhimento a minha proposta, porque o espirito publico não estava ainda bastantemente avisado para attingir o seu alcance, e os governos não ouviram a minha voz, ou a julgariam porventura astucioso reclamo para entreter o resto da vida, como se fôra possivel poder eu arrogar-me um trabalho de tanta a magnitude!
Se assim foi, enganaram-se e damnificaram o paiz, porque durante os ultimos dez annos pouco mais se fez, havendo quasi tudo por fazer, e deixaram esta terra de tantos brios e preeminencias inhibida de condignamente concorrer, como lhe competia, aos grandes certamens scientificos, a que a Europa civilisada tem chamado todos os povos do mundo, como ainda no anno findo succedeu n’um importante congresso de París, onde não foi visto um unico representante official, mas apenas um escriptor portuguez, que a suas expensas, e com superior illustração, se propôz ir discutir gravissimos assumptos e offerecer á discussão insignes trabalhos anthropologicos.
Tudo parece, porém, agora querer mudar de feição em presença do recente ministerio de instrucção publica, fundado nas mui sensatas considerações que antecedem o decreto que o instituiu; pois é o proprio governo quem as profere, inteiramente convencido de que «um povo sem instrucção, não póde occupar condignamente o logar que deve ambicionar entre as nações cultas, prosperas e independentes da epocha moderna», reconhecendo que «a cultura intellectual a consciencia plena dos direitos, o verdadeiro amor da independencia, o apreço das instituições e o incitamento ao progresso». Duvida alguma resta, pois, de que v. ex.ª se propõe em breve tempo occupar-se de todos os ramos de instrucção publica desde a mais elementar até á sciencia mais elevada, assim como das bellas artes, e por isso, entre taes limites, não póde deixar de ter cabimento o  meu antigo programma.
Com este animador fundamento limitar-me-hei a lembrar e propôr a instituição e regulamento dos estudos que durante muitos annos tenho cultivado e de que estou officialmente incumbido.
Em 1878 apresentei ao governo a carta archeologica do Algarve, sendo a primeira e unica que até hoje se tem coordenado n’este paiz, e em 1880 fundei em Lisboa um museu, que a comprovava do modo mais authentico, como o julgaram insignes membros do congresso internacional de anthropologia e de archeologia prehistorica, que n’esta capital celebrou a sua nona sessão; mas o methodo scientifico que regeu a sua organisação não foi adoptado, porque sempre se tem preferido, em taes instituições, a completa ausencia de methodo.
Foi, emfim, n’aquelle mesmo anno, como já disse, que saiu impresso o meu livro das Antiguidades de Mertola, em que deixei indicado a largos traços o systema que julguei e julgo dever-se empregar para o reconhecimento e estudo das antiguidades do reino.
Existindo, porém, hoje um ministerio de instrucção publica, como poderá suppor-se que o descobrimento geral das antiguidades nacionaes, a sua representação em cartas e em museus scientificamente organisados, assim como o seu respectivo estudo, tenham ainda algum adiamento, quando tão explicitamente o governo reconhece que o estudo e a diffusão das bellas artes constituem uma necessidade publica?
Acresce ainda um novo compromisso, que obriga todos os paizes a inventariar os seus padrões monumentaes e artisticos, em vista das deliberações tomadas em París na sessão de 24 de junho de 1889 pelo «congresso internacional para a protecção das obras de arte e dos monumentos de cada nação», a fim de poderem auferir a protecção confraternal das nações estrangeiras em caso de guerra.
Já ahi se tentou elaborar um tal inventario, mandado fazer por portaria do ministerio das obras publicas de 24 de outubro de 1880; mas como poderia então relacionar-se o que ainda não se tinha estudado, quando o muito, que o estava, ficou sem indicação?
Tudo se acha incompleto e reclamando energico remédio!
O museu de bellas artes tem, primeiro que tudo, de representar methodicamente, em conformidade de um curso escolar bem ordenado, os diversos ramos, estylos e epochas de architectura, esculptura, pintura e artes correlativas inherentes ao curso geral, a fim de que os alumnos, no seguimento do seu estudo, possam achar praticamente exemplificadas todas as especialidades do ensino theorico; mas, para que o museu corresponda plenamente a esta necessidade, é indispensavel que cada um dos seus principaes grupos represente ordinalmente por epochas, a partir dos seus mais remotos caracteristicos, todas as phases de evolução, de progresso ou de decadencia por que foi passando no decurso dos tempos. D’este modo o museu ensinaria praticamente a historia da arte, servindo de superior utilidade aos alumnos e artistas de profissão e de proficua insinuação ao espirito publico. Ficaria, portanto, sendo um irreprehensivel museu de bellas artes, scientificamente organisado, sem que houvesse precisão de copiar modelos estrangeiros.
A este museu escolar muito conviria addicionar uma secção de bellas artes propriamente nacional, a partir das mais assignaladas manifestações que sublimaram desde logo o aureo berço d’esta formosissima monarchia; pois não faltam preciosos monumentos de architectura religiosa, civil e militar, não faltam opulentas esculpturas ornamentaes e decorativas, de variadissimo lavor; não faltam pinturas iconographicas muito dignas das epochas a que pertencem; nem mesmo estylos de primorosa composição, para que todas estas grandezas, verdadeiramente symbolicas, por que cada uma d’ellas é um codice de tradições gloriosas, deva merecer a estima, o respeito e a veneração do coração portuguez. Seria, pois, este o mais poderoso meio de libertar dos despegos da indifferença o valor e a significação de todos esses padrões venerandos, que ahi, esparsos por todo este reino, estão silenciosamente ensinando o que esta nobilissima nação deve ás conquistas da do seu patriotismo, e as obrigações que comsigo mesma contrahiu de perpetual-os como reliquias memoraveis da sua outr’ora sumptuosa autonomia.
Conviria, emfim, haver tambem no museu de bellas artes uma secção de artes industriaes, organisada por epochas, que representassem em grupos distinctos, cuidadosamente ordenados, todos os generos de artefactos antigos existentes nas collecções do estado, e de possível acquisição, que pelo estylo da sua fórma, composição e ornato patenteassem a directa applicação de um ou mais ramos de arte, sendo porém assignalados com rotulos especiaes em todas as series os de reconhecida fabrica nacional, a fim de que se podesse deduzir do respectivo catalogo o grau de cultura que em diversos tempos, em que não havia pomposas academias, attingiu o sentimento e o saber artistico n’este paiz, e ficar servindo de escola e de incitamento á cultura e progresso das aptidões actuaes e futuras, assim como de comprovação historica do estado de civilisação em que este povo sempre se manteve distincto e digno de equiparar-se aos de mais atilado primor intellectual.
Mas se tudo isto, além de todos os mais ramos de conhecimentos humanos, é reconhecidamente preciso á instrucção geral de uma nação, que por seu proprio esforço se constituiu livre, independente, prospera e respeitavel, conquistando passo a passo todo este territorio e vasto dominio em todos os continentes, como deve ella continuar a desconhecer ou a desprezar os seus padrões monumentaes, os de todas as sociedades que a precederam, e ainda aquelles que ficaram assignalando á posteridade os seus insignes descobrimentos, as suas incomparaveis conquistas e seus infinitos feitos admiravelmente gloriosos?
Está dado o primeiro impulso: as antiguidades do Algarve acham-se reconhecidas, symbolisadas por uma carta paleoethnologica e por outra de archeologia historica, comprovadas por um museu que reclama ser promptamente reorganisado, e descriptas n’uma obra que corre adiantada, estando a entrar no prelo o quarto volume.
É o que exigem todos os outros districtos do nosso territorio; é o que reclamam a sciencia, a historia de todas as populações que aqui viveram desde os tempos geologicos e a das principaes instituições religiosa, militar e naval, que tão maravilhosamente perpetuaram o nome portuguez em todo o mundo.
Para se fazer o que falta, não é preciso programma, porque está feito: basta seguir o que foi adoptado no Algarve. Também não falta gente competente para dirigir os trabalhos mediante instrucções especiaes, que facilmente poderei formular. temos ahi alguns illustres obreiros mui dignos de tal incumbencia; conhece-os v. Ex.ª, certamente, conheço-os eu e o paiz inteiro.
Falta sómente um regulamento legal que determine:
1.º A organisação, no ministerio de instrucção publica, de uma direcção geral de archeologia e bellas artes, dividida em duas repartições e servida por funccionarios da mais reconhecida competencia.
2.º Abrir-se concurso por espaço de um anno para a apresentação de um compendio de paleoethnologia e de archeologia historica, para ser submettido á approvação de um jury composto de escriptores especialistas, e aggregar-se este curso elementar ao curso superior de letras ou ao ultimo anno do lyceu de Lisboa, a fim de poder ser dois annos depois addicionado aos outros lyceus do continente e por este modo diffundidas as noções mais geraes dos assumptos que constituem esta nova sciencia das nações civilisadas, e ao mesmo tempo preparadas as vocações de maior distincção para no futuro poderem concorrer com suas elucidações ao depuramento dos elementos mais seguros de que carece a historia do homem e dos progressos da sua industria.
3.º O levantamento da carta archeologica do reino em seguimento dos limites septentrionaes das do Algarve, servindo de base a carta chorographica de Portugal, na escala de 1:100.000, publicada pela direcção geral dos trabalhos geodesicos.
4.º A divisão d’esta carta em seis circumscripções archeologicas, tendo por sédes as cidades de Faro, Evora, Lisboa, Coimbra, Porto e Braga, ou Guimarães, onde já existe uma sociedade scientifica e um importante museu.
5.º Incumbir-se a exploração concernente ao reconhecimento e acquisição das antiguidades prehistoricas e historicas das ultimas cinco circumscripções, a elaboração das cartaes parciaes, a organisação do museu e a descripção das suas antiguidades em obra especial, a escriptores nacionaes, que por suas conhecidas obras de archeologia se tornem dignos de confiança, ou a engenheiros habituados a trabalhos geodesicos ou de minas, por se abonarem com valiosos conhecimentos scientificos de utilissimo auxilio, principalmente para os estudos da paleoethnologia.
6.º Que a cada explorador seja fornecida a carta parcial da sua circumscripção, dividida em concelhos, freguezias e logares, e as instrucções que devem dirigil-o no decurso dos seus trabalhos, acompanhadas do mappa geral dos symbolos de convenção internacional, para poder indicar na carta as epochas e os generos das antiguidades que descobrir.
7.º Que o explorador mande photographar em determinada escala todos os monumentos prehistoricos e historicos da sua circumscripção, levantar as plantas e perfis das construcções arruinadas ou arrazadas, que estejam á vista ou haja descoberto, tome os apontamentos indispensaveis, em caderno especial, á descripção respectiva a cada um d’esses padrões da antiguidade, e empenhe os seus maiores esforços para obter todas as manifestações ethnicas, paleontologicas e industriaes que fôr descobrindo, as quaes, mui cuidadosamente rotuladas e registradas, deve enviar para a séde do seu districto, onde ficarão temporariamente depositadas sob a vigilancia da auctoridade superior.
8.º Que o explorador, findo o reconhecimento da circumscripção, em conformidade do programma que receber, proceda á organisação methodica do museu na sua respectiva séde, a fim de com elle comprovar authenticamente a carta correspondente, e fique preparado para o estudo descriptivo da carta e das antiguidades que ella symbolisar.
A reunião das cartas parciaes constituirá a carta archeologica geral do reino e a ordenação systematica dos monumentos de cada circumscripção representará, por epochas e generos, as antiguidades nacionaes de todos os tempos. Obtidos taes resultados praticos, este paiz, no campo da sciencia, levantar-se-ha á altura das mais cultas nações, nivelando-se, como distincto obreiro do progresso, com as que proseguem na vanguarda da civilisação.
9.º Para a superior regulação de todos os trabalhos archeologicos, conservação e reparação dos monumentos nacionaes, assim como para a fiscalisação dos museus, convem haver um inspector dos monumentos do sul e outro dos do norte, o primeiro na circumscripção de Lisboa e o segundo em alguma das do norte, devendo o de Lisboa funccionar junto da direcção geral de archeologia e bellas artes, no ministerio de instrucção publica, e com esta repartição corresponder-se o do norte, sendo regidas as funcções dos ditos dois inspectores por um regulamento especial.
Os directores dos museus corresponder-se-hão com os respectivos inspectores.
Obrigados os exploradores das cinco restantes circumscripções a colligir os caracteristicos ethnicos encontrados no decurso do seu trabalho, e devendo-se presumir que em algumas sejam insufficientes para constituir uma secção anthropologica, occorre naturalmente a conveniencia de serem todos reunidos em museu especial ao da circumscripção archeologica de Lisboa, vindo acompanhados da planta, descripção e classificação dos seus jazigos, a fim de se poderem ordenar chronologicamente e com elles ser fundado o museu central de anthropologia prehistorica e historica, de que tanto se ha mister, como base fundamental de toda a ethnographia; mas, para que este museu e o seu estudo scientifico não possam accusar lacunas que interrompam o regular seguimento ethnographico de cada idade, periodo ou epocha, n’este territorio, devem indispensavelmente ser-lhe remettidas com as precisas indicações as organisadas collecções ethnologicas do Algarve e todas as que existirem em quaesquer estabelecimentos publicos do paiz, para que um tal museu, dispondo d’estes elementos, permitta poder-se elaborar sobre a carta geologica uma carta ethnographica de anthropologia, cujos symbolos de representação indiquem os logares, as epochas e os generos de jazigo de todas as reliquias ethnologicas do nosso territorio, e possa ficar preparado, quanto possivel, para deixar emprehender o seu estudo methodico e assim poder-se chegar ás conclusões concernentes ás raças ou populações humanas que viveram n’esta parte da peninsula luso-hispanica desde a idade geologica, periodo ou epocha a que chegarem os seus caracteristicos.
Decretada a instituição do «museu central de anthropologia nacional», composto dos mencionados elementos e de todos os mais subsidios que se possam adquirir, muito conviria que no mesmo museu fôsse leccionado um curso de anthropologia e houvesse todos os instrumentos, apparelhos e utensilios em uso nas diversas medições geometricas e de cubagem, e nas operações de estereographia craniometrica, assim como uma livraria especial.
O logar de fundador e director do museu, accumulando as funcções de professor do curso de anthropologia, com superior vantagem póde ser deferido em concurso publico a um cidadão portuguez, que mostre ser formado em medicina n’uma qualquer escola nacional ou estrangeira, que melhores provas documentaes, publicações especiaes ou trabalhos ineditos apresente, no prazo que fôr designado, perante a direcção geral de archeologia e bellas artes do ministerio de instrucção publica.
Com referencia a esta sciencia, não ainda incluida no quadro geral da instrucção nacional, supponho ser por emquanto sufficiente centralisar o seu ensino n’esta capital, porque antes de uma reforma geral de aperfeiçoamento nos diversos cursos de instrucção publica, seria talvez prematura a sua diffusão. Em todo o caso, o museu anthropologico deve ser unico, porque só assim, com referencia ao nosso territorio, póde assumir a significação geral que lhe compete.
Não penso, porém, d’este modo ácêrca dos altos estudos da paleoethnologia e da archeologia historica; entendo que não se devem centralisar na capital, e que a capital, pelo contrario, em vez de exhaurir o territorio nacional de lodos os padrões monumentaes que possam represental -o, deve concorrer para que os mantenha.
Ha incalculavel conveniencia para o proprio estudo em não apartar das localidades uns certos monumentos referentes a estradas itinerarias, a logares amuralhados, a edificios cm ruinas ou mesmo arrazados, em razão da homogeneidade de relações que os ligam aos sitios a que pertencem. Ficando nas suas circumscripções, mais facilmente se confrontam com os edificios de que fôram extrahidos e n’ellas perpetuam as memorias do passado, associando-se a todas as mais antiguidades intransportaveis, taes como dolmens, necropoles e outras construcções.
Além d’isto, a centralisação archeologica em Lisboa impede a cultura de muitas aptidões distinctas, que em varias terras do reino se estão manifestando, aniquila nas provincias um dos mais attrahentes incentivos ao estudo de diversos ramos de conhecimentos humanos, repelle a exhibição de valiosissimas collecções particulares, que certamente nunca seriam depositadas em Lisboa, e usurpa a autonomia scientifica a que podiam aspirar as cidades que concentrassem os museus de antiguidades das suas circumscripções, deixando por isso de ser visitadas por sabios nacionaes e estrangeiros, e nomeadas com aquella superior distincção que estão logrando, por seus famosos museus, numerosas cidades de diversas nações. Finalmente, privar as provincias d’esse poderoso meio de cultura e representação scientifica, equivaleria a destruir as suas condições de progresso intellectual – em completa desharmonia com os mui previdentes intuitos que levaram o governo a propor ao chefe da nação a instituição do ministerio de instrucção publica e a querer que não houvesse no reino mais do que duas ou tres cidades dignas de attenção.
São, pois, estes os principaes serviços que julgo deverem ser estabelecidos, em vista do que exigem as sciencias archeologicas e das contribuições com que este paiz tem de concorrer para poder ser equiparado aos de mais adiantada sabedoria.
Parecerá, porventura, que um tal conjuncto de instituições iria exuberantemente affrontar o renascido ministerio de instrucção publica, obrigando-o ao dispendio de avultadas sommas para se poderem levar a effeito; mas ludo se póde mui prudentemente prevenir e ordenar em termos convenientes, estabelecendo-se no proximo orçamento, como base e ponto de partida «a maior verba annual que fôr possivel determinar-se para este ramo de estudos».
Se essa verba fôr sufficiente para se poder repartir por todas as circumscripções, o trabalho do reconhecimento geral póde ser começado ao mesmo tempo; não o sendo, deve regularmente seguir do alto Algarve para o Alemtejo, e indispensavelmente na Estremadura, onde convém que, na capital, sejam logo reunidos os elementos fundamentaes para a organisação do museu central de anthropologia nacional.
Findo o primeiro anno de exploração no Alemtejo e na Estremadura, ter-se-ha effeituado na cidade de Faro a reorganisação do museu do Algarve, ficando assim concluidos os trabalhos da primeira circumscripção do sul, se for desde nomeado o pessoal respectivo áquelle museu. Querendo, porém, alguma das circumscripções do norteCoimbra, Porto e Braga ou Guimarães (no caso de não poder o governo mandal-as ao mesmo tempo explorar)adiantar os precisos meios, a fim de não retardar os seus trabalhos, ao governo conviria acceitar, obrigando-se ao reembolso por uma verba especial designada nos subsequentes orçamentos, e a nomear logo o respectivo pessoal.
A homogeneidade com que todos os trabalhos de exploração, de elaboração das cartas parciaes e de organisação dos museus se devem harmonisar, depende absolutamente das habilitações dos escriptores especialistas, da competencia e rigorosa fiscalisação dos inspectores do sul e do norte, que houverem de ser nomeados, e por isso é mister ter-se em vista que os trabalhos das circumscripções de Evora, Lisboa, Coimbra, Porto e Braga ou Guimarães exigem individuos, que, mediante as instrucções que receberem dos inspectores, saibam dirigir a exploração, colligir e classificar as provas locaes, organisar as cartas, os museus e descrever as respectivas antiguidades.
Portanto, competindo aos inspectores a regulação e fiscalisacão dos serviços que o governo possa em breve tempo querer determinar, devem elles ser nomeados com antecedencia; mas, parecendo ao mesmo tempo ser muito conveniente que estes inspectores, assim como o de bellas artes, fiquem adjuntos á direcção geral de archeologia e bellas artes, é consequentemente necessario que esta direcção seja dividida em duas repartições especiaes, e ao mesmo tempo nomeados os funccionarios que devam constituil-as sob a presidencia de um «director geral de archeologia e bellas artes».
Mediante o programma e o orçamento, concernentes á organisação dos estudos archeologicos, que reservo esboçados, esperando que v. Ex.ª se digne querer examinal-os e corrigil-os, o custo da exploração para o levantamento da carta archeologica do reino e instituição dos mencionados museus, dividido pelos dois annos em que já calculei poder-se effeituar este importantissimo trabalho, a terem-se em consideração as vantagens que d’ahi devem resultar ao desenvolvimento da instrucção publica do paiz, é relativamente modesto, sobretudo se o compararmos com outras muitas despezas menos precisas e de menor conveniencia, que anteriormente se hão feito sem deixarem apreciavel vestigio das applicações que tiveram.
O que desde posso informar a v. ex.ª, como prova do que acabo de referir, é que, em vista do orçamento que tenho calculado, a despeza annual a fazer com a manutenção das inspecções do sul e do norte, do museu central de anthropologia e dos  museus archeologicos de Faro, Evora, Lisboa, Coimbra, Porto e Braga ou Guimarães, é mui notavelmente inferior á que foi decretada em 2 de março de 1881 para a gerencia da academia real de bellas artes de Lisboa, reunida á que sobreveiu com o arrendamento do palacio das Janellas Verdes, e a manutenção do museu que alli existe.
Com referencia ao calculado custo da exploração geral das cinco restantes circumscripções, do levantamento das cartas geraes de ethnologia, de paleoethnologia e de archeologia historica, bem como da acquisição dos elementos que devem constituir os referidos museus em seis cidades do reino, é tambem inferior á despeza em que importaram as obras do palacio das Janellas Verdes e áquella que foi absorvida pela exposição de arte ornamental e decorativa, de que apenas restam uns celebres catalogos testemunhando a completa ausencia de methodo que a regeu!
Não ouso com estas reflexões insinuar o descuramento das bellas artes; julgo, pelo contrario, dever-se desde já tratar da reorganisação das escolas e museus, comquanto sabido seja que a prosperidade das bellas artes nunca se viu raiar em meio de um povo mal provído de instrucção, como o está ensinando a antiguidade classica das civilisações grega e romana, que só attingiu a sua mais primorosa elevação artistica quando as sciencias e as letras chegaram a firmar n’aquellas robustas nacionalidades os mais abastecidos fócos de sabedoria; pois o sentimento do gosto, a agudeza do engenho e a esthetica da arte não se ensinam, nascem da cultura do entendimento, e, portanto, sem esta cultura, faltará sempre o principal elemento do progresso artistico.
É, pois, por isso que sou levado a antepôr a utilidade dos altos estudos da anthropologia, da paleoethnologia e da archeologia historica, como a de todas as mais sciencias, á do talvez prematuro aperfeiçoamento das bellas artes; porque, para aperfeiçoar é primeiramente preciso organisar com esclarecida sciencia, e a sciencia, quando não existe, ensina-se, mas não se póde repentinamente vincular; e tão convencido está v. ex.ª de que a instrucção publica é uma inquestionavel necessidade nacional, que se propõe amplamente diffundil-a, partindo da mais elementar até á mais elevada, para crear a que não existe e aperfeiçoar a que não produz sensiveis resultados.
Bem devêra eu pensar que aos insignes talentos, com que v. ex.ª deixa transluzir os seus elevados meritos, não escaparia a mui reconhecida necessidade de instituir n’este reino os estudos archeologicos; mas o facto de não os ver especificados, como o fôram os de bellas artes, embora não signifique a sua exclusão, não me permittiu ficar silencioso e trahindo as minhas mais arraigadas convicções.
Fôram estes os apontamentos, certamente ainda incompletos, que enderecei ao sr. ministro da instrucção publica, reservando-me para apresentar os projectos dos regulamentos que taes estudos exigem e os orçamentos respectivos á sua realisacão; mas nada d’isto me foi pedido.
Continúo, porém, a dedicar estes modestissimos serviços ao meu muito adorado paiz, e por isso os ponho á disposição de todos os governos e de todas as sociedades scientificas nacionaes que queiram aproveital-os.
É este o prefacio do quarto volume das Antiguidades monumentaes do Algarve».

Em síntese, Estacio da Veiga foi autor de um original e completo discurso arqueológico, no qual insistiu em valorizar, sobremaneira, o estudo científico do objecto arqueológico em si, não pela sua beleza ou valor material, mas por constituir uma fonte objectiva de informação. Nesta perspectiva, contribui significativamente para a emancipação da Arqueologia enquanto ciência, na linha dos “geólogos-arqueólogos” da Comissão Geológica, distanciando-se, na prática e conceptualmente, dos “arqueólogos-antiquários” e dos historiadores, em regra resistentes ao reconhecimento de qualquer valor científico nos vestígios materiais.
Perpassa barreiras e estabelece pontes entre diversas áreas do conhecimento, conciliando, por via de uma franca atitude multi e transdisciplinar, as diversas fontes e contributos disponíveis para a elaboração e comunicação de um científico discurso arqueológico.
Partindo dos artefactos e dos respectivos contextos arqueológicos, procura complementares referências, designadamente paralelos arqueológicos produzidos por outros investigadores nacionais e internacionais, bem como dados históricos, valorizando as fontes clássicas e os autores portugueses de séculos passados – “As inúmeras citações de obras de eminentes naturalistas, fossem antropólogos ou geólogos, a par de arqueólogos do seu tempo, mostram um espírito crítico, sempre atento aos progressos científicos produzidos além-fronteiras, sendo hoje difícil imaginar-se os esforços e dinheiro dispendidos para a obtenção dessas obras, que certamente leu e releu, como se verifica pelas inúmeras citações delas apresentadas ao longo dos seus escritos” (CARDOSO, 2006, p. 299-300).



1 Condição 3.ª Cada volume não conterá menos de trezentas paginas de texto de corpo 12 n.º 2, entrelinhado, formato 8.º francez grande, a fóra as estampas o desenhos correspondentes.