Estacio da Veiga: a Carta Archeologica do Algarve, o Museu Archeologico do Algarve, as Antiguidades Monumentaes do Algarve e um “Programma para a instituição dos estudos
archeologicos em Portugal”
Muito poderia ser dito acerca da vida e obra de Estacio da Veiga
(1828-1891).
Acerca da sua biografia, a tarefa encontra-se justamente concretizada
em diversos trabalhos, designadamente na mais extensa biografia até à data
produzida sobre Estacio da Veiga, da autoria de sua bisneta, Maria Luísa
Estácio da Veiga Pereira, dada à estampa em 1981 (PEREIRA, 1981); e no amplo
artigo Estácio da Veiga e a Arqueologia -
um percurso científico no Portugal oitocentista, publicado em 2006 por João
Luís Cardoso, produzido com base no repositório documental do volumoso arquivo
pessoal de Estacio da Veiga, à guarda do Museu Nacional de Arqueologia desde
1893 (CARDOSO, 2006). De referir, também, o 4.º
Encontro de Arqueologia do Algarve - Percursos de Estácio da Veiga,
organizado pela Câmara Municipal de Silves em Novembro de 2006. Sendo inteiramente
dedicado ao legado de Estacio da Veiga, as respectivas actas foram publicadas
em 2007, na XELB - Revista de
Arqueologia, Arte, Etnologia e História, n.º 7, resultando num valioso
acervo informativo sobre os contributos deste extraordinário investigador.
Relativamente à sua obra pioneira, inédita, extensa, exemplarmente
completa e plena de actualidade, interessa-nos, no contexto do presente
trabalho, isolar e destacar o seu inestimável e inspirador contributo no âmbito
do território concelhio de Vila do Bispo.
Sebastião Philippes
Martins Estacio da Veiga, “Moço Fidalgo” nascido em Tavira em 1828, no seio de uma nobre família rural, “socio correspondente da academia real das sciencias e da sociedade de
geographia de Lisboa, do instituto e da sociedade broteriana de Coimbra, do
imperial instituto archeologico germanico de Roma, da sociedade franceza de
archelogia, da real academia da historia de Madrid, da sociedade economica de
Malaga, da academia de archeologia da Belgica, do instituto archeologico e
geographico pernambucano, collector e fundador do museu archeologico do
Algarve” (VEIGA, 1886), revelou-se, nos finais do século XIX, como uma das
maiores referências da história da Arqueologia Portuguesa, legando-nos uma
extensa e meritória obra, plena de actualidade, mesmo para os contemporâneos
padrões científicos e intelectuais.
Engenheiro de Minas formado na Escola Politécnica, em Lisboa, cursou
uma série de disciplinas, designadamente Geologia, Paleontologia, Mineralogia,
Topografia e Geodésia, uma diversificada paleta de áreas científicas que lhe
conferiram especiais aptidões para os trabalhos de campo que mais tarde viria a
desenvolver no âmbito da Arqueologia.
Na vanguarda do intelectual panorama europeu da época, o seu
incontornável contributo, enquanto pioneiro da científica e sistemática
investigação arqueológica algarvia, foi inédito, completo e exemplar, quer a
nível regional como a nível nacional.
Em Março de 1877, no seguimento
da incumbência do Governo de então, dá início aos trabalhos da Carta
Archeologica do Algarve, “talvez, a mais notável iniciativa no
domínio da Arqueologia até hoje empreendida em Portugal (...). A desproporção da empresa e dos
resultados obtidos, face à fragilidade de recursos humanos e financeiros
alocados, ainda mais releva o mérito da obra”
(CARDOSO, 2006, p. 295).
Assim, entre 13 Março
de 1877 e os finais do Outono de 1878,
Estacio percorre o Algarve de “lés-a-lés”, numa incansável empreitada. Para o
efeito, a sua metodologia baseou-se, numa primeira
fase, numa forte abordagem pessoal de contacto directo com as gentes locais,
por vezes intermediada por informadores e colectores de sua confiança, granjeando
o apoio de diversas pessoas ilustres, sensíveis e interessadas pela história
local e pelo coleccionismo de antiguidades. Numa segunda fase, depois de
filtrado o potencial informativo das referências obtidas por informação oral,
deslocou-se a alguns dos supostos locais de proveniência dos materiais arqueológicos,
entretanto doados, comprados e integrados na sua colecção pessoal, para
confirmação das presumíveis realidades arqueológicas – “não
me foi possivel emprehender minuciosas pesquizas em todos os pontos
assignalados com apparentes indicios de occupação antiga, e muito menos
empregar continuamente o systema de procurar por tentativa o que a terra
occultava aos olhos do observador insciente” (VEIGA, 1886,
p. 20). Em situações excepcionais, realizou mesmo
trabalhos arqueológicos de escavação, exemplarmente documentados por descrições,
desenhos e plantas, por exemplo, e como veremos mais adiante, no sítio romano
da Boca do Rio (Budens/Vila do
Bispo).
Consequentemente, em 1880,
apresenta ao Congresso de Anthropologia e de Archeologia Prehistorica,
reunido em Lisboa, os resultados preliminares das suas campanhas algarvias – “Aos sabios, que forem sinceramente
bem intencionados, bastará olharem com alguma attenção para o primeiro trabalho
que n’este genero se publica em Portugal, representando as antiguidades
prehistoricas até hoje verificadas n’uma provincia inteira, para comprehenderem
quantos descobrimentos significa, quão aturadas fadigas e grandes difficuldades
me foi mister empregar e vencer para poder agora abandonal-o á luz da
publicidade” (VEIGA, 1886, p. 28).
No mesmo ano (1880) funda
em Lisboa, na Academia Real das Belas
Artes, o Museu Archeologico do Algarve. Depois de gorada a prioritária
intenção de uma sede provincial no Algarve, no extinto Convento de São
Francisco, em Faro, e de “sabotadas” as diligências para o sediar na Academia Real das Ciências de Lisboa, passando
por um processo um tanto “obscuro” e à margem do conhecimento e das intenções
do próprio Estacio da Veiga, o “seu museu” é instituído em 1880, por despacho
do Ministro do Reino, conforme Ofício outorgado pelo então Director Geral da
Instrução Pública, que formalmente o incumbe “de
classificar e catalogar por modo que possam ser expostos ao publico os
Monumentos Archeologicos vindos ultimamente do Algarve, e por V. Ex.ª
descobertos e colleccionados para a comprovação da Carta Archeologica d’aquella
Província” (CARDOSO, 2006, p. 346-362).
Foi assim que no dia 26
de Setembro de 1880, após uma
esforçada e dedicada maratona, Estacio da Veiga abre ao público as portas do
Museu, a tempo de ser visitado pelos ilustres
congressistas reunidos em Lisboa a propósito do Congresso
de Anthropologia e de Archeologia Prehistorica, entre os quais se destacavam o arqueólogo francês
Émile Cartailhac e o antropólogo alemão Rudolph Virchow.
Durante o efémero período de oito meses (1880-1881), este museu – “o
unico museu que em Portugal foi methodicamente organisado para representar por
epochas distinctas e em ordem geographica as antiguidades de uma provincia
inteira” (VEIGA, 1886, p. XI)
– apresentou os exemplares mais representativos
do acervo artefactual colectado nos trabalhos de campo da Carta Archeologica do Algarve, sendo entretanto“transferido e arrecadado a instancias do inspector da academia de
bellas artes sob o pretexto de carecer do espaço que occupava!” (VEIGA,
1886, p. XII); “n’umas
casas inferiores da academia de bellas artes e n’um pateo infecto e sombrio,
que foi cemiterio do ex-convento de S. Francisco, onde tambem ficou sepultado;
o que por emquanto relato sem os devidos commentarios, porque o facto basta
para mostrar o lamentoso atrazamento em que este genero de estudos se acha
ainda n’este paiz!”
(VEIGA,
1886, p. 11).
Em resposta a esta
inopinada falta de estima pelos seus esforços, projecto e pelo próprio conjunto
artefactual, Estacio da Veiga incumbe o seu conterrâneo, amigo e colaborador,
Judice dos Santos, de remover e remeter para o Algarve todo o espólio
museológico (VEIGA, 1886, p. XII).
Por fim, este significativo
acervo acaba por transitar para o então denominado Museu Ethografico Português,
em Lisboa, fundado em 1893 por José Leite de Vasconcelos (1858-1941) – o actual
Museu Nacional de Arqueologia (Mosteiro dos Jerónimos). A este propósito, Leite
de Vasconcelos, em carta dirigida em 1894
a Martins Sarmento, informa ter conseguido que o Governo adquirisse o espólio
arqueológico do Museu Acheologico do
Algarve – “fui ao Algarve em Janeiro
buscá-lo, e já todo ele está debaixo da minha guarda no Museu Etnographico” (FABIÃO, 2008, p. 115).
Este tratou-se de um episódio final ao qual Estacio da Veiga,
entretanto falecido em 1891,
conceptualmente e declaradamente se opôs em vida, advogando a
descentralização
dos serviços ligados à Arqueologia, através da criação de seis circunscrições
no Reino e a consequente oposição museus provinciais/regionais vs Museu Nacional.
Recuando um pouco no tempo, ao ano de 1882, Estacio funda, na cidade de Faro, o Instituto Archeologico do Algarve,
na sua intenção, o destino final de todo o espólio colectado na Carta Archeologica do Algarve, “porque
sómente alli poderá o museu ser conservado intacto; só alli poderá manter-se
congruente aos fins da sua especial instituição; só alli poderá progredir,
porque as principaes collecções particulares, que já são muitas e valiosas em
toda a provincia, contribuirão para o seu enriquecimento; só alli se poderão
addicionar-lhe os monumentos que com frequencia estão apparecendo em quasi
todas as circumscripções municipaes, e porque só alli reassumirá a feição
geographica que lhe compete, será mais sensivel a sua significação e abrirá um
novo horisonte ao progresso da instrucção superior, de que tanto carece este
territorio, onde não faltam talentos e illustrações para honrarem o paiz,
tomando o logar que lhes compete nos grandes certames scientificos proprios
d’este século” (VEIGA, 1886, p. 15-16).
Em 1886, cumprindo o
contrato que firmou com o Governo de então, em 29 de Maio de 1879, Estacio
publica os resultados das suas investigações no primeiro volume das suas Antiguidades
Monumentaes do Algarve - tempos prehistoricos, seguindo-se em 1887,
1889 e 1891 os volumes II, III e IV, respectivamente (VEIGA, 1886; 1887; 1889;
1891), no conjunto “representando o
periodo neolithico, a transição deste periodo para a idade do bronze, esta
idade e a idade do ferro”. Em 2005, no âmbito das iniciativas Faro - Capital Nacional da Cultura, estes quatro preciosos volumes
foram em boa hora reeditados pela Universidade do Algarve, em versão fac-simile e com um estudo introdutório
da autoria de Teresa Júdice Gamito (VEIGA, 2005).
Postumamente, em 1904, é
publicada, nas páginas de O Archeologo Português, a 1.ª parte
do tripartido Capítulo V das Antiguidades
Monumentaes do Algarve, desta feita acerca dos tempos historicos (VEIGA,
1904; 1905; 1910). Ainda incompleto, este Volume V terá sido enviado pelo
próprio Estacio da Veiga para a Direcção Geral da Instrução Pública,
sendo posteriormente resgatado pelo director do então designado Museu Etnográfico Português e editor da
revista O Archeologo Português, José
Leite de Vasconcelos (CARDOSO, 2006, p. 294). Muito recentemente, em 2006, o
Volume V foi justamente reeditado e publicado na íntegra pelo Museu Nacional de
Arqueologia e pela Câmara Municipal de Silves (VEIGA, 2006).
Na leitura dos cinco
volumes das “Antiguidades”
transparece a inovação da prática arqueológica, a exemplar minúcia e rigor dos
trabalhos de campo e dos respectivos levantamentos, e o alcance de um ciclo
completo nos estudos de gabinete, com o processamento conceptual dos dados
obtidos, na elaboração e comunicação de um discurso “final” e na crítica
proposição de futuras iniciativas de complementaridade e continuidade.
Em jeito de introdução,
sobre a organização formal e editorial da obra, Estacio da Veiga abre o
primeiro volume das Antiguidades
Monumentais do Algarve com a seguinte “advertência” (VEIGA, 1886, p. V-VI):
Advertencia
«No
programma geral d’esta obra estavam destinados todos os assumptos concernentes
ao periodo neolithico para constituirem o primeiro volume, suppondo que não
excederiam o numero de paginas que cada livro deve ter, em vista da terceira
condição1 do
contracto que o governo commigo celebrou para eu descrever em cinco ou seis
volumes as Antiguidades monumentaes do
Algarve; e, com effeito, se me houvesse limitado aos descobrimentos
provenientes do reconhecimento que me foi incumbido para a elaboração da carta archeologica d’aquella provincia,
o calculo não falharia.
Succedendo porém haver
noticia de terem posteriormente apparecido outras muitas antiguidades, que
deixavam perceber a existencia de importantes estações não ainda conhecidas,
determinou o governo que fôssem estudadas, a fim de serem symbolisadas na carta
archeologica e descriptas na obra contractada.
Feita uma exploração
complementar, ganhou a carta mais cincoenta e sete logares com antiguidades
prehistoricas; mas ainda assim pensei que accrescentando umas cem paginas ás
que o volume devêra conter, poderia abrangel-as, e com este intuito começou o
trabalho da composição.
Quando, porém, estando
já impressas mais de quatrocentas paginas, se calculou faltarem ainda umas
duzentas, e que numerosas estampas tinham de ser addicionadas, notou-se que o
livro attingiria extraordinaria grossura, de que resultariam diversos e
simultaneos inconvenientes; pois ficaria assim em desarmoniosa desproporção com
o formato; a brochura seria assaz trabalhosa, demorada, de muito dcspendio e
pouco consistente; subordinado a uma taxa bastante elevada, que de certo
impediria o consumo; seria sensivelmente incommodo para a leitura;
estragar-se-hia com facilidade, obrigando logo o possuidor á inevitavel despeza
da encadernação; e o peso, que ficaria tendo, causaria muito embaraço e
avultado custo para poder ser transportado por via postal.
Todas estas
considerações, praticamente suscitadas pelo desenvolvimento do livro, logo que
chegou aos dois terços da sua composição typographica, me obrigaram a
reduzil-o, sem comtudo interromper ou alterar a numeração ordinal dos capitulos
e da paginação, emquanto não chegasse ao seu termo final o estudo respectivo a
todos os caracteristicos pertencentes ao periodo neolithico, os quaes
forçadamente tiveram de ser repartidos, e concluidos no segundo volume, já em
grande parte impresso para em breve tempo ser levado á publicidade.»
Nas páginas seguintes, segue-se o prefácio inaugural das Antiguidades Monumentaes do Algarve,
intitulado “Nenhum prefacio, poucas explicações e varios agradecimentos” (VEIGA, 1886, p. VII-XVI). Trata-se de um
interessantíssimo texto que retrata a conjuntura arqueológica da época (em boa
verdade não muito distante da realidade actual) e as dificuldades que o autor
confrontou e teve de contornar na execução da Carta Archeologica do Algarve e na própria impressão tipográfica
das “Antiguidades”, denotando já
algum desencantamento e sentida falta de apoio, por parte das instituições
tutelares, para a aplicação do seu ambicioso programa arqueológico à escala
nacional.
Um texto no qual nos
são transmitidos, na primeira pessoa e com grande humildade, os frustrados
objectivos que presidiram à efémera instituição do Museu Archeologico do Algarve (1880-1881), além de uma série de reconhecimentos e agradecimentos às
pessoas que directa e indirectamente contribuíram para a realização da sua
ambiciosa empresa arqueológica Algarvia.
Nenhum prefacio,
poucas explicações e varios agradecimentos
«O prefacio, que competia a este livro, ja não póde ter cabimento,
porque foi escripto n’uma conjunctura em que algumas illusões animavam ainda os
intuitos verdadeiramente bons e generosos com que desejei empenhar os meus mais
decididos esforços para firmar um programma, que, em razão da sua proficuidade,
regesse methodicamente o descobrimento, o estudo e a representação do
riquissimo thesouro, sempre mal comprehendido e mal estimado, das mui complexas
antiguidades paleoethnologicas e historicas, que todos os entendimentos
illustrados deviam presumir que existisse largamente ramificado em todo este
reino; e, com effeito, aquellas illusões, emquanto não fui compellido a transferir o museu archeologico do Algarve para uma
apertada o sombria arrecadação da academia do bellas artes, não deixavam de
ser alimentadas com algum fundamento, visto que até então nunca me tinham sido
recusados os auxilios de que carecia aquella nascente e mui esperançosa
instituição.
As causas, porém, que promoveram o encerramento do museu, produziram
outros adversos resultados, que aqui me abstenho de relatar, comquanto
indispensavelmente julgue dever declarar, que o retardamento n’esta publicação
não me póde ser attribuido, porque tendo o governo contractado a primeira
edição da minha obra em cinco ou seis volumes, e obrigando-se por uma
escriptura de contracto a fornecer para cada um as respectivas estampas,
sómente em 30 de março de 1886 acabei de receber as que havia muito tempo
impediam a impressão d’este primeiro tomo; o que me levou, para as intercalar
na ordem geral dos assumptos, a alterar em grande parte o manuscripto que desde
agosto de 1885, embora por este motivo forçadamente incompleto, já tinha
apresentado; e se a composição não começou logo, mas muitos mezes depois, foi
por haver numerosos trabalhos accumulados nas officinas typographicas da
imprensa nacional, e não por falta de texto preparado; pois até ao fim do
quarto capitulo não havia estampas.
Dadas estas explicações a todas as pessoas que vagamente me tenham
julgado em falta, reservo as que por emquanto ficam em silencio para um
escripto de outra indole, se a tanto for obrigado.
Antes porém de dar logar n’este livro ao primeiro capitulo, cumpre-me
registrar algumas palavras de respeitosa lembrança, de que me confesso devedor
a muitas pessoas ainda existentes e á memoria de outras já fallecidas, que me
honraram com o seu efficaz adjutorio desde que a meu cargo tomei o estudo geral
das antiguidades do Algarve.
N’estes termos e com estes intuitos, cabe a primasia ao governo que em
1877, certamente por informações ou conceitos de que eu não era merecedor, me
preferiu entre os socios da academia real das sciencias de Lisboa para a
elaboração da carta archeologica do Algarve, havendo na academia sapientes
archeologos, que muito melhor teriam sabido corresponder a um tão difficil
emprehendimento.
A este respeito posso afoutamente declarar, que não me offereci, não
me fiz lembrado, e que não foi sem grande hesitação que annui ao convite do
governo, como se me fôra dado pressagiar a impagavel perda da minha anterior
traquillidade e as ruinas que um mesquinho antagonismo desde então me foi
preparando.
Ao actual sr. ministro do reino, que, sendo-o igualmente em 1880, se
dignou incumbir-me da organisação do museu archeologico do Algarve, porque o
julgou tão indispensavel para a comprovação authentica da carta archeologica,
como de publica utilidade scientifica, envio o meu mais respeitoso
agradecimento, por haver-me confiado a direcção de um serviço sobremaneira
importante e honroso, sentindo porém que s. ex.ª não tenha ainda podido
examinar a verdadeira e assaz injustificavel causa que originou o encerramento
d’esse museu, para o restaurar agora, que póde ser em maior escala ampliado e
enriquecido com preciosas collecções ultimamente organisadas, e mantel-o com os
mesmos fundamentos de reconhecido prestimo que o levaram a determinar a sua
fundação.
Com mui valiosa cooperação concorreu o sr. conselheiro Antonio Maria
de Amorim, director geral de instrucção publica, tanto para eu poder levar a
effeito os trabalhos respectivos á carta archeologica, como para os da
organisação do museu, e ainda posteriormente para os da exploração complementar
que fiz em 1882.
Ficando pois todos estes serviços, e bem assim os que são relativos á
publicação d’esta obra, subordinados á sua superior direcção, cabe-me o dever
de manifestar-lhe o meu reconhecimento pela benevolencia com que os tem
auxiliado, esperando porém que queira empregar a sua mais vigorosa iniciativa,
como ao seu cargo compete, para que o museu archeologico do Algarve, onde estão
depositadas as minhas antigas collecções e devem estar outras muitas ainda
ignoradas, seja promptamente reorganisado, sem dependencia de pretenciosas
intrusões, a fim de que readquira o valor scientifico, que ninguem lhe póde
negar, e a consideração com que taes instituições estão sendo altamente
estimadas e mantidas nos paizes de mais adiantada civilisação.
Foi assaz melindrosa a situação em que me achei no Algarve, tendo a
meu cargo reconhecer as antiguidades que deviam ser symbolisadas na carta
archeologica, pela maior parte concentradas em terrenos de dominio particular.
Era pois mister solicitar licença aos proprietarios para por meio de excavações
chegar a classifical-as.
Numerosas licenças foram pedidas e nenhuma recusada. Não tendo o
direito de lançar mão dos monumentos descobertos em propriedade alheia, mas
receando que ficassem dispersos e em risco inevitavel de se perderem, a todos
os proprietarios propuz officiosamente tomar eu conta dos que fôssem achados
para com elles organisar um museu, que ficasse representando as antiguidades da
nossa bella provincia. A idéa agradou geralmente, porque era o inicio
fundamental de uma instituição util e honrosa para o Algarve.
Alguns parentes e amigos, querendo porém levar os seus obsequios a um
maior grau de primor, preferiram offerecer para as minhas collecções
particulares numerosos monumentos e artefactos que tinham antecedentemente
encontrado nos seus trabalhos ruraes, e d’este modo, assim como comprando todos
os objectos antigos que me eram apresentados, consegui dar ás minhas antigas
collecções grande desenvolvimento.
Ricos e pobres me receberam sempre com a mais mimosa affabilidade, e
por isso não acho termos bastante significativos para testemunhar a esses meus
prezadissimos conterraneos os agradecimentos de que me considero devedor á
bizarria e cavalheirosa franqueza com que se dignaram tratar-me. A todos fiquei
devendo muito favor, e se não aggrego aqui a extensa relação de tantos nomes
sympathicos, é porque a tenho n’esta occasião a muita distancia das minhas
vistas. Nos diversos capitulos d’este livro citarei porém varios nomes, que
julgo associados a este trabalho pela elevada significação dos serviços
auxiliares que representam.
Não posso deixar em esquecimento as attenções e a coadjuvação que
encontrei em todas as auctoridades nas diversas occasiões em que necessitei
recorrer á sua intervenção, assim como os espontaneos obsequios com que
numerosas pessoas particulares se dignaram receber-me em varias terras do meu
transito.
Desde o começo dos trabalhos da exploração até uma data posterior á do
encerramento do museu archeologico do Algarve, alguns periodicos politicos e
litterarios quizeram distinguir-me com a sua benevolencia, engrandecendo os
meus modestos serviços.
Longe de poder corresponder condignamente a esses benemeritos do
progresso, porque nunca chegam a ser sufficientemente retribuidas estas dividas
honrosissimas, dividas que crescem com o decorrer dos tempos, sendo animadoras
companheiras da vida e titulos que sempre ficam ennobrecendo o devedor,
compete-me comtudo, endereçar aos auctores de tantos conceitos primorosos,
embora immerecidos, o meu mais confraternal protesto de grato reconhecimento,
deixando aqui estas poucas palavras para o manterem e memorarem.
Em igual obrigação me julgo tambem para com alguns sabios
estrangeiros, signatarios de valiosos escriptos, em que o museu do Algarve e o
meu humilde nome ficaram lembrados. Refiro-me principalmente aos srs. Virchow,
Cartailhac, de Laurière, de Ceuleneer e Henri Martin, auctores dos relatorios
respectivos aos trabalhos do congresso
de anthropologia e de archeologia prehistorica, celebrado em Lisboa no mez
de setembro de 1880, e bem assim aos preciosos escriptos, que o dr. Emilio Hübner tem publicado
relativamente aos monumentos com que organisei a secção epigraphica.
Ás pessoas que não visitaram o museu e áquellas que, podendo e devendo
promover a sua reorganisação, agora muito mais ampla, o têem deixado ha tantos
annos em lamentavel abandono, seja-me permittido solicitar a leitura d’esses
relatorios, não para que tomem em consideração os mal cabidos louvores de que
fiquei devedor á cortezia d’esses respeitaveis cultores e propagadores da
sciencia, mas para que não levem a sua negligencia até o ponto de desprezarem o unico museu que em Portugal foi
methodicamente organisado para representar por epochas distinctas e em ordem
geographica as antiguidades de uma provincia inteira. Dando pois o maior
apreço a esses tilulos de subida importancia com que ficou memorado o museu por
mim iustituido, compete-me n’este logar agradecel-os a esses sabios
distinctissimos, que tanto me têem honrado.
Ao sr. Cartailhac devo ainda muito mais, porque, parecendo não ter
julgado sufficientes os benevolos louvores com que me havia distinguido no
relatorio que dirigiu ao ministerio de instrucção publica de França, quiz de
novo confirmar e desenvolver as suas anteriores asserções no esplendido livro
intitulado Les âges préhistoriques de
l’Espagne et du Portugal, onde representa, descreve e recommenda numerosos
caracteristicos das antiguidades paleoethnologicas mais typicas do museu do
Algarve, contrastando por este modo com o systematico desfavor dos que deviam
engrandecer, em vez de amesquinhar, a incontestavel significação scientifica
d’aquelle conjuncto de padrões monumentaes.
Envio portanto ao sr. Cartailhac as affirmações do meu mais expressivo
agradecimento.
Em varios capitulos d’este livro serei mui gostosamente obrigado a
referir-me aos serviços com que fui auxiliado pelo meu mui prestadio
conterraneo o sr. Joaquim José Judice dos Santos, mas não é demasiado
lembral-os desde já!
Logo que o governo me incumbiu de organisar o museu, o sr. Judice dos
Santos, a meu convite, enviou-me immediatamente as suas famosas collecções de
instrumentos prehistoricos, acompanhadas de monumentos e numerosos objectos
caracteristicos de varias nacionalidades historicas, que durante muitos annos
tinha colligido no Algarve; com essas collecções, methodicamente distribuidas,
representei muitos logares indicados na carta archeologica e augmentei os
grupos destinados á comprovação das antiguidades de outros ainda necessitados
de bons exemplares.
Emquanto o museu esteve aberto ao publico, o sr. Judice dos Santos
reforçou as suas collecções, enviando-me os objectos que ía adquirindo, e
sómente retirou tudo, tambem a meu pedido, na occasião em que o museu foi
transferido e arrecadado a instancias do inspector da academia de bellas artes
sob o pretexto de carecer do espaço que occupava!
Esta prova de confiança com que o sr. Judice dos Santos quiz
distinguir-me, não posso eu deixar de lembrar com muita consideração, assim
como o espontaneo offerecimento que me fez n’um artigo publicado no Districto de Faro, de poder de novo
contar com as suas collecções logo que se trate da reorganização do museu.
Comquanto por vezes haja de referir-me n’este livro a outros bons
conterraneos, a quem fiquei devedor de importantes obsequios, cumpre-me deixar
já aqui indicados os nomes dos que mais contribuiram para o desenvolvimento das
minhas collecções e com maior peculio para a organisação do museu.
Refiro-me aos cavalheiros, meus distinctos amigos, os srs. Manuel José
de Sarrea Tavares Garfias e Torres (de Portimão), João Lucio Pereira (de
Olhão), Sebastião Fernandes Estacio da Veiga (de Tavira), Antonio José Nunes da
Gloria, prior de Bensafrim, e José da Costa Serrão, administrador do concelho
de Aljezur.
Já não posso directamente agradecer á ex.ma sr.ª D. Maria do Carmo
Estacio da Veiga e Tello uma selecta collecção de antiguidades historicas que
reuniu na quinta da Torre de Ares, nem ao sr. Francisco Simão da Cunha a
collecção, que me legou, de excelentes objectos antigos, descobertos na sua
quinta do Arroio, perto de Tavira, porque aos que cessaram de existir, só me é
licito registrar aqui um preito de respeitosa homenagem em sua memoria.
Compete-me tambem especialisar o nome do sr. Antonio de Paulo Serpa,
habil empregado na direcção das obras publicas do districto de Faro, pela
intelligencia e acerto com que desempenhou todos os trabalhos de que o incumbi
entre Alcoutim e Albufeira, como bem o exemplificam as plantas que levantou e
sobre todas as das ruinas de Ossonoba, e bem assim pela zelosa circumspecção
com que dirigiu o serviço da contabilidade, mui intimamente aggregado ao da
fiscalisação das explorações.
Para os trabalhos de plantas e desenhos muito concorreu igualmente o
sr. João Tavares Bello, a quem confiei a direcção do desenho das estampas que
no museu estão coordenadas em pasta reservada; e porque trato de recordar-me
dos homens mais prestadios que me acompanharam nas minhas improbas excursões,
não estranhem os meus leitores, que entre tantos nomes distinctos, inclua o de
um pobre maritimo de Faro, José Viegas, porque foi elle o descobridor dos
jazigos da idade do bronze no Monte da Zambujeira, perto de Castro Marim, um
dos mais vigilantes apontadores dos meus trabalhos, e activo empregado de
inexcedivel probidade; o que me deixou praticamente mais um exemplo de que a
honra portugueza é ainda um dos mais immaculados brazões da classe popular
d’esta nação.
Não posso deixar em esquecimento os serviços com que me auxiliou o sr.
João Nunes Faria, canteiro que reside na freguesia de Santa Barbara de Nexe, a
quem incumbi o descobrimento e compra de todos os objectos antigos que podesse
adquirir, confiando na sua intelligente actividade e no conhecimento que tinha
de todo o territorio da provincia. Foram muitos os logares com antiguidades que
descobriu e numerosas as suas acquisições, mas as que obteve por obsequio de
amigos e conhecidos, assim mesmo m’as transmittiu, não me permittindo a minima
retribuição.
Os monumentos epigraphicos da Fonte de Apra, da Silveira e do Colmeal,
assim como diversos objectos, que em seus logares serão descriptos, são
offerecimentos seus para as minhas collecções. Comprazo-me pois de poder
memorar n’estes termos a honradez e o prestimo de um modesto operario. Outros
similhantes serviços me fez o sr. Antonio Marcellino Madeira, descobrindo
muitos logares com apreciaveis antiguidades na freguezia de Cacella, onde vive
modestamente do trabalho da sua lavoura, e adquirindo para as minhas collecções
excellentes objectos antigos que existiam esparsos em poder de ignaros
possuidores.
Em alguns museus de Lisboa achei auxilios mui valiosos.
No museu zoologico da escola polytechnica francamente me permittiu o
sr. conselheiro Barbosa du Bocage os estudos que precisei fazer, e no museu
mineralogico da mesma escola, onde me foi mister proceder á classificação de
varios exemplares paleontologicos e de alguns instrumentos de pedra de mui
difficil reconhecimento apparente, encontrei sempre os mais proficuos auxilios
no seu sabio director, o sr. conselheiro Pereira da Costa, e no meritissimo
naturalista adjunto, engenheiro de minas,
o sr. Jacintho Pedro Gomes, a quem a sciencia e aquella nobilissima
escola devem já mui importantes serviços.
No museu da secção geologica tambem o seu distincto director, o sr.
Nery Delgado, auctor de preciosas publicações scientificas, me permittiu
observar os interessantes caracteristicos paleoethnologicos alli grupados sob a
epigraphe de cada uma das estações exploradas, e tomei varias notas, que hão de
ver-se desenvolvidas em alguns capitulos d’esta obra, sendo-me fornecidos
apreciaveis esclarecimentos pelo sabio professor da universidade do Zurich, o
sr. Paulo Choffat, a quem este paiz deve estudos e publicações da mais elevada
importancia scientifica, e pelo mui festejado anthropologista, o sr. F. de
Paula e Oliveira, ao passo que o insigne mineralogista, o sr. Alfredo Bensaude,
procedia com delicada precisão á analyse chimica de alguns dos meus
instrumentos de pedra, que á simples vista ninguem poderia classificar.
No museu do Carmo permittiu-me o seu presidente e fundador, o sr.
Narciso da Silva, que copiasse tres placas de schisto gravadas, e de outras
placas similhantes, existentes no museu de Evora, me mandou excellentes copias
o sr. Gabriel Pereira, erudito archeologo, tão conhecido e estimado no paiz,
como bem considerado no conceito de sabios estrangeiros.
Os apreciaveis resultados de valiosissimos estudos anthropologicos com
que o sr. dr. Francisco Ferraz de Macedo muito me auxiliou, vão enumerados n’um
capitulo do segundo volume.
Finalmente, um outro serviço importantissimo, de que carece o terceiro
volume d’esta obra, embora não me fôsse ainda confiado, julgo poder esperar do
meu illustradissimo conterraneo, o sr. João Bonança, auctor de uma obra de
grandioso theor que vae começar a ser impressa sob o titulo de «Historia da Luzitania e da Iberia», com
tão extraordinaria complexidade de assumptos altamente scientificos e
litterarios, que me faz anciosamente desejar a sua publicidade. Refiro-me á
interpretação dos celebres monumentos da necropole da Fonte Velha de Bensafrim
com inscripções gravadas em caracteres paleographicos peninsulares, que até
hoje ainda ninguem tinha decifrado, mas cujo alphabeto e processos de
applicação á leitura d’esses venerandos padrões da prehistoria da peninsula o
sr. João Bonança affirma ter descoberto á custa de muitos annos de aturado
estudo e de uma perseverança inabalavel.
D’este modo, aquelles monumentos, que depositei no museu do Algarve,
assim como toda a nummaria celtiberica, as rochas in situ e os artefactos que restam com taes legendas até agora
mysteriosas, readquirirão a rediviva expressão de uma linguagem de ha muito
emmudecida, que foi fallada e ficou escripta n’esta ultima plaga do Occidente
desde tempos remotissimos, e passarão a ser os mais authenticos documentos
historicos, geographicos, numismaticos e linguisticos, d’essas civilisações
quasi ignoradas; e por isso aqui anticipo os tributos de admiração, que possam
ser devidos a um tão corajoso operario do progresso.
Ficam reservados muitos mais nomes para serem inscriptos n’outras
paginas d’esta obra, em que o meu, de todo o ponto humilde, melhor fôra que
houvesse sido substituido por algum de mais abonada idoneidade.»
À imagem
deste texto, e como veremos, a leitura das “Antiguidades”
de Estacio da Veiga é impressionante pela própria escrita do autor, pela sua
objectividade científica, pela qualidade gráfica das impressões, designadamente
patente nas suas belíssimas estampas, e pela extensíssima bibliografia
consultada e referida, relativa aos temas tratados, lida e traduzida
criticamente, questionando opiniões e concepções de grandes vultos da ciência e
do pensamento, portugueses e estrangeiros, seus contemporâneos e “clássicos”.
Uma
“monumental” produção, organizada segundo as divisões administrativas algarvias
(Concelhos e Freguesias) e segundo uma lógica geográfica de Oeste para Este, de
Barlavento para Sotavento, de Sagres até ao Guadiana, abarcando diversas
temáticas que confluem para o entendimento da paleoethnologia (Pré-história), numa vanguardista perspectiva de
tendência interdisciplinar – nos dias de hoje, uma premissa fundamental da
investigação arqueológica.
Estacio da Veiga lega-nos um inestimável acervo de informação
arqueológica regional, associado à enumeração de um conjunto de fundamentais
pressupostos metodológicos, reflexões teóricas e orientações científicas para a
actividade arqueológica nacional, plenos de actualidade e que ainda hoje, com
as necessárias adaptações, deveriam servir de guião para os nossos trabalhos.
A este propósito, no
início do Volume IV das “Antiguidades”,
publicado em 1891, Estacio propõe, em jeito de preâmbulo, um Programma
para a instituição dos estudos archeologicos em Portugal (VEIGA, 1891,
p. 1-16). Trata-se de texto
deveras notável, pela objectividade e clareza com que o autor define as
prioridades de actuação no âmbito da implementação e organização, em Portugal,
de uma descentralizada investigação, inventariação, defesa e divulgação do
património arqueológico, entregue em 1890 ao então Ministério da Instrução Publica (CARDOSO, 2006, p. 296). Em 1980,
esta proposta programática é republicada por Victor S. Gonçalves (GONÇALVES,
1980), no âmbito do seu projecto de retoma da Carta Arqueológica do Algarve (GONÇALVES,
1979).
Esta
exemplar peça merece aqui uma íntegra reprodução e inspiradora leitura,
conforme a original e nobre ortografia da época (Prefácio do
Vol. IV – VEIGA, 1891, p. 1-16):
Programma
para a instituição
dos
estudos archeologicos em
Portugal
«Com
este livro
termino o
trabalho respectivo á paleoethnologia do
Algarve, em
relação aos
descobrimentos effeituados até
este
anno de
1890;
o que
não quer dizer
que nada mais
ficasse por estudar, porque, em
meu entender, o que não me foi permittido descobrir,
é muito
mais do que o que symbolisei nas
duas cartas actualmente publicadas.
Entretanto, é porém o Algarve o unico territorio em que foi possivel fazer-se um
estudo methodico, embora não tão
desenvolvido como conviria ter
sido; pois,
infelizmente, nas outras provincias quasi tudo jaz ignorado. D’este modo,
póde-se dizer,
que
ainda n’esta
data não
ha uma noção
geral das
antiguidades nacionaes,
nem mesmo a possibilidade
pratica de se ordenar a sua catalogação scientifica; o
que está
lamentavelmente impedindo
não poucos individuos, de
já comprovada
competencia, de emprehender
qualquer trabalho
especial que
tenha de
ser subordinado a um não interrompido seguimento
ethnographico, e collocando este paiz na
misera condição de permanecer estacionario
em numerosos ramos de conhecimentos humanos
perante as
nações que caminham na vanguarda do
progresso social.
Esta injustificavel falta,
geralmente sentida por
todos os entendimentos
que sabem
comprehendel-a, não póde porém
ser supprida
por uns planos,
tão vagos como incompletos,
que ahi
se hão
visto emittidos
com o
directo proposito de se tratar da instituição de um grande museu nacional n’esta capital,
composto de
uma infinidade
de elementos heterogeneos de
todas as
epochas e
proveniencias, porque só mui parcamente cada um
dos seus
variadíssimos grupos poderia corresponder a um qualquer estudo especial e systematico, como
bem
se deve
conceber. Não me conformando, porém, com taes planos de immoderada
centralisação, cujo resultado
pratico seria a deslocação perniciosissima dos monumentos
que devem
servir de
guia ao descobrimento
dos vestigios, ainda
occultos, correspondentes
a cada phase das civilisações que
nos
precederam, que é o que mais deve
interessar-nos, porque antes de se ter chegado a este conseguimento, nunca
haverá sufficientes e bem ordenados
fundamentos para se poder escrever a
historia d’este territorio; e
considerando, emfim, que este devêra ser o pensamento preferido,
porque da
sua realisação
resultaria o conhecimento
geral das
antiguidades d’este solo, e
d’este
conhecimento uma serie de
trabalhos de superior importancia, tratei
de reviver
um já
antigo programma,
que a largos
traços havia enunciado nas primeiras paginas do
meu livro
das Antiguidades
de Mertola, logo que
vi decretada
a instituição de um ministerio de instrucção
publica e bellas artes,
e d’este modo enviei
ao respectivo
ministro, o
sr. conselheiro
João Arroyo,
a seguinte representação
e o
programma, que julguei e
julgo dever-se
adoptar para
a instituição
dos estudos archeologicos em todo o reino.
O referido sr.
ministro mostrou, porém, não ter
querido honrar com a sua attenção a
minha proposta;
mas, sendo possivel
que algum seu
successor possa
comprehendel-a e adopta-la, aqui fica textualmente registrada.
Encarregado, ha muitos annos dos estudos
archeologicos do Algarve, nunca
perdi de
vista o programma
que vagamente esbocei na minha memoria das Antiguidades
de
Mertola, impressa em 1880, para
que taes
estudos, sob
o mesmo systema que
estabeleci, fôssem extensivos
a todo o
continente do reino, porque só assim, perante as
exigencias da sciencia moderna,
proclamadas por todos os paizes do
mais alumiado
entendimento, poderia esta nação, com os seus opulentos
thesouros archeologicos methodicamente
organisados, ministrar a
essa sciencia
que se
propõe pôr por obra a historia da
humanidade e do trabalho, as comprovações criticas mais
definitivas da nunca interrompida
população que teve este privilegiado
territorio desde remotas idades
geológicas
até o
alvorecer dos tempos historicos
e das suecessivas
phases de civilisação por
que fôram
passando essas sociedades que nos precedem.
D’este modo
a nação
portugueza, que tão amplamente levou
ás mais
longinquas regiões do
mundo
os seus
ensinamentos, quando as
que desde então
fôram aprendendo
a engrandecer-se, apenas figuravam
nos mappas
geographicos modestamente limitadas
ao sólo
do seu
nascimento, daria novo testemunho dos seus
já um
tanto deslembrados
meritos, mostrando
haver comprehendido ser a sciencia a
mais poderosa
alavanca que póde levar as nações
decadentes, ou ainda incultas, a nivelarem-se com
o valor intellectual dos maiores potentados,
a força mais vigorosa
que preside
aos destinos
dos povos,
preparando-lhes o presente e abrindo-lhes os
horisontes do futuro, e a luz que esclarece e dirige todas as
funcções da vida social,
quando esparge
a instrucção correspondente a cada classe ou
categoria das
que no
seu
conjuncto compõem as populações.
Não teve, porém,
o minimo
acolhimento a minha proposta, porque o espirito publico
não estava
ainda bastantemente avisado
para attingir
o seu alcance,
e os
governos não
ouviram a
minha
voz, ou
a julgariam
porventura astucioso reclamo para entreter
o
resto da
vida, como
se fôra possivel
poder eu arrogar-me um trabalho
de tanta
a magnitude!
Se assim foi, enganaram-se
e damnificaram
o paiz,
porque
durante os
ultimos dez annos pouco mais se
fez, havendo
quasi
tudo por fazer,
e deixaram esta terra
de tantos
brios e preeminencias
inhibida de
condignamente concorrer, como
lhe competia, aos grandes certamens scientificos,
a que
a Europa
civilisada tem chamado todos
os povos
do mundo, como ainda no
anno findo succedeu n’um
importante congresso de París, onde não foi visto um unico
representante official, mas apenas um escriptor portuguez, que a suas expensas, e com superior illustração,
se propôz ir discutir gravissimos assumptos
e offerecer á discussão
insignes trabalhos anthropologicos.
Tudo parece, porém,
agora querer mudar de
feição em
presença do recente
ministerio de instrucção publica, fundado
nas mui sensatas
considerações que antecedem o decreto que
o instituiu; pois é o proprio governo
quem
as profere,
inteiramente convencido de que «um povo sem instrucção, não póde occupar condignamente o logar que deve ambicionar entre as nações cultas, prosperas e independentes da epocha moderna», reconhecendo que «só a cultura intellectual dá a consciencia plena dos direitos, o verdadeiro amor da independencia, o apreço das instituições e o incitamento ao progresso». Duvida alguma resta, pois,
de que
v. ex.ª se propõe em breve tempo
occupar-se de todos os ramos de instrucção
publica desde a mais elementar até á sciencia mais elevada, assim como das
bellas artes, e por isso, entre taes
limites,
não póde deixar de ter cabimento o
meu já
antigo programma.
Com este animador fundamento limitar-me-hei a lembrar e propôr a instituição e regulamento dos estudos que durante muitos annos tenho cultivado e de que estou officialmente incumbido.
Em 1878 apresentei
ao governo a
carta archeologica do
Algarve,
sendo a primeira e
unica que até
hoje se tem coordenado n’este
paiz, e em 1880
fundei em Lisboa
um museu, que a
comprovava
do modo
mais authentico, como
o julgaram insignes
membros
do congresso internacional
de anthropologia e de
archeologia prehistorica,
que n’esta capital celebrou
a sua nona sessão; mas o methodo scientifico que regeu a sua organisação não foi adoptado, porque sempre se tem preferido, em taes instituições, a completa ausencia de methodo.
Foi, emfim, n’aquelle mesmo anno, como já disse, que saiu impresso o meu livro das Antiguidades de Mertola, em que deixei indicado a largos traços o systema que julguei e julgo dever-se empregar para o reconhecimento e estudo das antiguidades do reino.
Existindo, porém, hoje um ministerio de instrucção publica, como poderá suppor-se que o descobrimento geral das antiguidades nacionaes, a sua representação em cartas e em museus scientificamente organisados, assim como o seu respectivo estudo, tenham ainda algum adiamento, quando tão explicitamente o governo reconhece que o estudo e a diffusão das bellas artes constituem uma necessidade publica?
Acresce ainda um novo compromisso, que obriga todos os paizes a inventariar os seus padrões monumentaes e artisticos, em vista das deliberações tomadas em París na sessão de 24 de junho de 1889 pelo «congresso internacional para a protecção das obras de arte e dos monumentos de cada nação», a fim de poderem auferir a protecção confraternal das nações estrangeiras em caso de guerra.
Já ahi se tentou elaborar um tal inventario, mandado fazer por portaria do ministerio das obras publicas de 24 de outubro de 1880; mas como poderia então relacionar-se o que ainda não se tinha estudado, quando o muito, que já o estava, ficou sem indicação?
Tudo se acha incompleto e reclamando energico remédio!
O museu de
bellas artes tem, primeiro
que tudo,
de representar methodicamente, em conformidade de um curso escolar bem ordenado, os diversos ramos,
estylos e epochas
de architectura, esculptura, pintura e
artes correlativas
inherentes ao curso geral,
a fim
de que
os alumnos,
no seguimento do seu estudo, possam achar
praticamente exemplificadas todas as
especialidades do ensino theorico; mas, para que o
museu corresponda
plenamente a esta necessidade, é
indispensavel que cada um dos seus principaes grupos represente ordinalmente
por epochas, a partir dos seus mais remotos caracteristicos,
todas as
phases de evolução,
de
progresso ou
de decadencia
por que
foi passando
no decurso dos tempos. D’este modo o museu ensinaria praticamente
a historia da arte, servindo
de superior utilidade aos alumnos e artistas de profissão e
de proficua
insinuação ao espirito publico.
Ficaria,
portanto, sendo
um irreprehensivel
museu de
bellas artes, scientificamente
organisado, sem que houvesse precisão
de copiar
modelos estrangeiros.
A este museu escolar muito
conviria addicionar
uma secção de bellas artes
propriamente nacional, a partir
das mais
assignaladas manifestações que sublimaram desde logo o aureo
berço d’esta
formosissima monarchia; pois
não faltam
preciosos monumentos
de architectura
religiosa, civil e
militar, não faltam opulentas
esculpturas ornamentaes e
decorativas, de variadissimo lavor; não faltam pinturas iconographicas muito dignas
das epochas a que pertencem; nem
mesmo
estylos de
primorosa composição, para que todas estas grandezas,
verdadeiramente symbolicas, por que cada uma d’ellas é um codice de tradições gloriosas,
deva
merecer a
estima, o
respeito e
a veneração
do coração
portuguez. Seria, pois,
este o mais
poderoso meio de libertar dos despegos da indifferença o valor e a significação de
todos esses padrões
venerandos, que ahi, esparsos por todo este
reino, estão silenciosamente ensinando o que esta nobilissima
nação deve
ás conquistas da fé do seu patriotismo, e
as obrigações
que comsigo mesma contrahiu de perpetual-os como reliquias
memoraveis da sua outr’ora sumptuosa autonomia.
Conviria, emfim, haver tambem no museu de bellas artes uma secção
de artes
industriaes, organisada por epochas, que
representassem em grupos distinctos, cuidadosamente
ordenados,
todos os generos de artefactos antigos existentes nas collecções do estado, e
de possível
acquisição, que pelo estylo
da sua fórma, composição e ornato patenteassem a
directa applicação
de um ou mais ramos de
arte, sendo
porém assignalados
com rotulos
especiaes em todas as series os de reconhecida fabrica
nacional, a fim de que se podesse deduzir do
respectivo catalogo o grau de cultura que em diversos tempos, em
que não havia
pomposas academias,
attingiu o sentimento e
o saber
artistico n’este
paiz, e ficar servindo de escola e
de incitamento á cultura e
progresso das
aptidões actuaes e futuras, assim
como de
comprovação historica do estado de civilisação em
que este
povo sempre
se manteve
distincto
e digno
de equiparar-se aos de mais atilado
primor intellectual.
Mas se tudo isto, além
de todos os mais ramos de
conhecimentos humanos, é reconhecidamente preciso á
instrucção geral de uma nação, que por seu proprio esforço se
constituiu livre,
independente, prospera e respeitavel, conquistando
passo a passo todo este territorio
e vasto
dominio em
todos os
continentes, como deve ella continuar
a desconhecer ou a desprezar os
seus padrões monumentaes, os de todas as
sociedades que a precederam, e ainda aquelles que
ficaram assignalando á posteridade os seus insignes descobrimentos, as suas incomparaveis conquistas
e seus infinitos feitos admiravelmente gloriosos?
Está dado o primeiro impulso: as antiguidades do Algarve acham-se reconhecidas, symbolisadas por uma carta
paleoethnologica e por outra de archeologia historica, comprovadas por um museu que reclama ser promptamente reorganisado, e descriptas n’uma obra que já corre adiantada,
estando a entrar no prelo o quarto volume.
É o que exigem todos
os outros
districtos do nosso territorio; é
o que
reclamam a
sciencia, a
historia de
todas as populações que aqui viveram desde os
tempos geologicos
e a
das principaes instituições –
religiosa, militar e naval
–, que
tão maravilhosamente
perpetuaram o nome portuguez
em
todo o
mundo.
Para se fazer o que
falta, não
é preciso
programma, porque
está feito: basta seguir o que
foi adoptado
no Algarve.
Também não falta gente
competente para dirigir os
trabalhos mediante
instrucções especiaes, que facilmente poderei formular.
Já temos ahi alguns illustres
obreiros mui
dignos de
tal incumbencia;
conhece-os
v. Ex.ª, certamente,
conheço-os eu e o paiz inteiro.
Falta sómente um
regulamento legal que
determine:
1.º
A organisação,
no ministerio
de instrucção
publica, de uma direcção geral de
archeologia e bellas artes, dividida em
duas
repartições e servida por funccionarios da mais reconhecida competencia.
2.º
Abrir-se concurso
por espaço de um anno para
a apresentação de um compendio de paleoethnologia e de archeologia
historica, para ser
submettido á approvação de
um jury
composto
de escriptores
especialistas, e aggregar-se este
curso elementar ao curso superior de
letras ou
ao ultimo anno
do lyceu
de Lisboa, a fim de poder ser dois annos
depois addicionado
aos outros
lyceus do
continente e por este modo
diffundidas as noções mais geraes dos assumptos que
constituem esta nova
sciencia das
nações
civilisadas, e ao mesmo tempo preparadas
as vocações
de
maior distincção
para no
futuro poderem
concorrer com suas elucidações
ao depuramento
dos elementos
mais seguros de que carece
a historia
do homem
e dos
progressos da sua industria.
3.º
O levantamento
da carta archeologica do
reino em
seguimento dos limites septentrionaes
das do Algarve,
servindo de base a carta chorographica
de Portugal,
na escala
de 1:100.000, publicada pela direcção geral dos
trabalhos geodesicos.
4.º
A divisão
d’esta carta em seis circumscripções
archeologicas, tendo por sédes as cidades de Faro, Evora,
Lisboa, Coimbra, Porto e
Braga, ou
Guimarães, onde já existe uma
sociedade
scientifica e um importante museu.
5.º
Incumbir-se a exploração concernente
ao reconhecimento e acquisição das
antiguidades prehistoricas e
historicas das ultimas cinco circumscripções, a elaboração das cartaes parciaes, a
organisação do museu e a descripção das
suas antiguidades em
obra especial,
a escriptores
nacionaes, que por suas já
conhecidas
obras de
archeologia se tornem dignos
de confiança,
ou a
engenheiros habituados a trabalhos geodesicos
ou de minas,
por se
abonarem com valiosos conhecimentos
scientificos de utilissimo auxilio, principalmente para
os estudos
da paleoethnologia.
6.º
Que
a cada
explorador seja fornecida
a carta
parcial da sua circumscripção, dividida
em concelhos,
freguezias e logares,
e as
instrucções que devem dirigil-o
no decurso
dos seus
trabalhos, acompanhadas do mappa geral dos
symbolos de
convenção
internacional, para poder indicar
na carta
as epochas e os generos
das antiguidades
que descobrir.
7.º
Que o
explorador mande
photographar em determinada escala todos os
monumentos prehistoricos e
historicos da sua circumscripção, levantar as
plantas e perfis das
construcções arruinadas ou arrazadas, que
estejam á vista
ou haja
descoberto, tome os apontamentos indispensaveis, em caderno especial,
á descripção respectiva a
cada um
d’esses padrões
da antiguidade, e empenhe os
seus maiores
esforços para
obter todas
as manifestações ethnicas, paleontologicas e industriaes que fôr descobrindo,
as quaes, mui
cuidadosamente rotuladas e
registradas, deve enviar para a séde do
seu districto,
onde ficarão
temporariamente depositadas sob a
vigilancia da auctoridade superior.
8.º
Que
o explorador, findo o
reconhecimento da circumscripção, em conformidade do programma
que receber,
proceda
á organisação methodica do museu
na sua
respectiva séde, a fim de com elle comprovar
authenticamente a carta correspondente,
e fique preparado para o
estudo descriptivo
da carta
e das antiguidades que ella symbolisar.
A reunião das
cartas parciaes constituirá a
carta archeologica geral do reino e a ordenação systematica
dos monumentos de cada circumscripção
representará, por epochas e
generos, as antiguidades
nacionaes de todos os tempos. Obtidos taes
resultados
praticos, este paiz, no
campo da
sciencia, levantar-se-ha
á
altura das
mais cultas
nações, nivelando-se,
como distincto
obreiro
do progresso,
com as
que proseguem
na vanguarda da civilisação.
9.º
Para a
superior regulação
de todos os trabalhos archeologicos, conservação e reparação dos monumentos nacionaes,
assim como para a fiscalisação
dos museus, convem haver
um inspector
dos monumentos
do sul
e outro
dos do
norte, o primeiro na circumscripção de Lisboa
e o
segundo em
alguma das
do norte, devendo o de Lisboa funccionar junto da
direcção geral de archeologia
e bellas
artes, no
ministerio de instrucção
publica, e com esta repartição corresponder-se o do
norte, sendo
regidas as
funcções dos ditos dois inspectores por
um regulamento
especial.
Os directores dos
museus corresponder-se-hão
com
os respectivos
inspectores.
Obrigados os exploradores das cinco restantes
circumscripções a colligir os
caracteristicos ethnicos encontrados
no decurso do seu trabalho, e devendo-se
presumir que em
algumas sejam insufficientes para constituir
uma secção
anthropologica, occorre
naturalmente a conveniencia de serem todos reunidos em
museu
especial ao
da circumscripção
archeologica de Lisboa, vindo acompanhados da planta, descripção
e classificação dos seus jazigos,
a fim
de se
poderem ordenar
chronologicamente e com
elles ser fundado o museu central de
anthropologia prehistorica e historica, de que tanto se ha mister, como base
fundamental de toda a ethnographia; mas,
para que este
museu e
o seu estudo scientifico não possam accusar
lacunas que interrompam o regular seguimento ethnographico de cada idade,
periodo ou
epocha, n’este territorio, devem indispensavelmente
ser-lhe remettidas
com as precisas
indicações as já organisadas collecções
ethnologicas do Algarve e
todas as
que existirem
em quaesquer
estabelecimentos publicos do paiz, para que
um tal
museu, dispondo
d’estes elementos,
permitta poder-se
elaborar sobre
a carta geologica uma carta ethnographica de anthropologia,
cujos symbolos de representação indiquem
os logares, as epochas e
os generos
de jazigo de todas as
reliquias ethnologicas do nosso territorio, e
possa
ficar preparado,
quanto possivel,
para deixar emprehender o
seu
estudo methodico
e assim
poder-se chegar
ás conclusões
concernentes ás raças ou
populações humanas que viveram n’esta parte da peninsula luso-hispanica desde a
idade geologica, periodo ou epocha a que chegarem os seus caracteristicos.
Decretada a instituição do «museu central de
anthropologia nacional», composto dos
mencionados elementos e
de todos
os
mais subsidios
que se
possam adquirir,
muito conviria
que no mesmo museu fôsse
leccionado um curso de
anthropologia e houvesse todos os
instrumentos, apparelhos e utensilios em
uso
nas diversas
medições geometricas
e de
cubagem, e
nas operações de estereographia craniometrica,
assim como
uma livraria
especial.
O logar de
fundador e director do museu, accumulando
as
funcções de professor do
curso de
anthropologia, com superior vantagem póde ser deferido em
concurso publico a um cidadão portuguez, que mostre ser formado em medicina n’uma qualquer escola nacional ou
estrangeira, que melhores provas documentaes, publicações
especiaes ou trabalhos ineditos
apresente, no prazo
que fôr
designado, perante a direcção geral de
archeologia e bellas artes do ministerio de instrucção publica.
Com referencia a esta sciencia, não ainda incluida no
quadro
geral da
instrucção nacional, supponho ser
por emquanto sufficiente centralisar o seu
ensino n’esta capital, porque
antes
de uma
reforma geral
de aperfeiçoamento
nos diversos
cursos de
instrucção publica, seria talvez prematura
a sua
diffusão. Em
todo
o caso,
o museu
anthropologico deve ser
unico, porque
só assim,
com referencia
ao nosso territorio,
póde assumir
a significação geral que lhe compete.
Não penso, porém, d’este
modo
ácêrca dos
altos estudos
da
paleoethnologia e da archeologia historica; entendo que não se devem centralisar
na capital,
e que
a capital,
pelo contrario,
em
vez de
exhaurir o territorio nacional
de lodos
os padrões monumentaes que possam represental -o,
deve concorrer para que os mantenha.
Ha incalculavel conveniencia
para o
proprio estudo em não apartar das localidades uns
certos monumentos
referentes a estradas itinerarias, a
logares amuralhados,
a edificios
cm ruinas
ou
mesmo
arrazados, em razão da homogeneidade de relações que os ligam aos sitios a
que pertencem.
Ficando nas
suas circumscripções,
mais facilmente
se confrontam com os edificios de
que
fôram extrahidos e n’ellas perpetuam as
memorias do
passado,
associando-se a todas as mais antiguidades intransportaveis,
taes
como dolmens,
necropoles e outras construcções.
Além d’isto, a
centralisação archeologica em
Lisboa impede a cultura de
muitas aptidões
distinctas, que em varias terras
do
reino se estão
manifestando, aniquila nas
provincias um dos mais attrahentes incentivos ao estudo de
diversos ramos
de conhecimentos humanos, repelle a
exhibição de valiosissimas collecções particulares, que certamente nunca seriam
depositadas em Lisboa, e usurpa a
autonomia scientifica
a que
podiam aspirar
as cidades
que concentrassem os museus de antiguidades das
suas circumscripções,
deixando por isso de
ser visitadas
por sabios nacionaes e estrangeiros, e nomeadas com
aquella superior
distincção que estão logrando,
por seus
famosos museus, numerosas
cidades de diversas nações. Finalmente,
privar as provincias
d’esse
poderoso meio de cultura e
representação scientifica, equivaleria a destruir as suas
condições de progresso intellectual – em completa desharmonia
com
os mui
previdentes intuitos que
levaram
o governo
a propor ao chefe da
nação a instituição
do ministerio de instrucção publica
– e
a querer que
não houvesse no reino
mais do que
duas ou tres
cidades dignas de attenção.
São, pois, estes
os principaes serviços que julgo deverem
ser estabelecidos,
em
vista do
que exigem as sciencias archeologicas e das contribuições com que este paiz
tem de
concorrer
para poder
ser equiparado
aos de mais
adiantada sabedoria.
Parecerá, porventura, que um tal conjuncto de instituições iria exuberantemente affrontar
o renascido
ministerio de instrucção publica, obrigando-o
ao dispendio de avultadas sommas
para
se poderem
levar a
effeito; mas ludo se
póde mui
prudentemente prevenir e
ordenar em
termos convenientes,
estabelecendo-se no proximo orçamento,
como base
e ponto
de partida «a maior verba annual que fôr possivel determinar-se
para
este ramo
de estudos».
Se essa verba
fôr sufficiente para se
poder repartir
por todas as circumscripções, o trabalho do reconhecimento geral
póde
ser começado ao mesmo tempo; não o
sendo, deve regularmente
seguir do
alto Algarve
para o Alemtejo,
e indispensavelmente
na
Estremadura, onde convém que,
na capital,
sejam logo
reunidos os elementos
fundamentaes para a organisação do museu central
de anthropologia nacional.
Findo o primeiro anno de
exploração no Alemtejo e
na Estremadura, ter-se-ha effeituado na
cidade de Faro
a reorganisação do museu do
Algarve, ficando
assim concluidos
os trabalhos
da
primeira circumscripção do sul, se for desde já
nomeado o
pessoal
respectivo áquelle museu. Querendo,
porém, alguma das circumscripções
do norte – Coimbra, Porto e
Braga ou
Guimarães
(no caso de não poder o governo mandal-as ao
mesmo tempo explorar) – adiantar os precisos meios,
a fim de
não retardar
os
seus trabalhos,
ao governo
conviria acceitar,
obrigando-se ao reembolso por
uma verba
especial designada
nos subsequentes orçamentos, e
a nomear
logo o respectivo pessoal.
A homogeneidade com
que todos
os trabalhos
de exploração, de elaboração das
cartas parciaes e de organisação
dos museus se devem harmonisar,
depende absolutamente
das habilitações
dos escriptores especialistas, da
competencia e rigorosa
fiscalisação dos inspectores do sul e do norte, que
houverem de ser nomeados, e por isso é mister
ter-se em
vista que
os trabalhos das
circumscripções de Evora, Lisboa, Coimbra,
Porto e
Braga
ou Guimarães exigem individuos,
que, mediante
as instrucções
que receberem
dos inspectores, saibam dirigir
a exploração, colligir e classificar as
provas locaes,
organisar as
cartas, os
museus e descrever as
respectivas antiguidades.
Portanto, competindo aos
inspectores a regulação e
fiscalisacão dos serviços que o governo possa
em breve
tempo querer determinar, devem elles
ser nomeados
com antecedencia; mas, parecendo ao
mesmo
tempo ser
muito conveniente
que estes
inspectores, assim como o
de bellas
artes, fiquem
adjuntos á direcção
geral de
archeologia e bellas artes,
é consequentemente
necessario
que esta direcção
seja dividida
em duas
repartições especiaes, e ao mesmo tempo nomeados
os funccionarios que devam constituil-as
sob a
presidencia de um «director geral de
archeologia e bellas artes».
Mediante o programma e o orçamento, concernentes á organisação
dos estudos archeologicos, que reservo esboçados, esperando que v. Ex.ª se digne querer
examinal-os e corrigil-os, o custo da
exploração para o
levantamento da carta archeologica do reino e instituição dos
mencionados museus, dividido
pelos dois
annos em que já calculei poder-se effeituar
este importantissimo
trabalho, a
terem-se em consideração as
vantagens que d’ahi devem resultar
ao desenvolvimento
da instrucção publica do
paiz, é relativamente
modesto, sobretudo se o compararmos com outras muitas despezas menos
precisas e
de menor
conveniencia, que anteriormente se
hão feito
sem deixarem
apreciavel vestigio
das applicações que tiveram.
O que desde já
posso informar a v. ex.ª, como prova
do que
acabo de referir,
é que,
em vista
do orçamento que tenho calculado,
a despeza
annual a fazer com
a manutenção
das inspecções do sul e do norte, do museu central de
anthropologia e dos museus archeologicos de Faro, Evora, Lisboa,
Coimbra, Porto
e
Braga ou
Guimarães, é mui notavelmente inferior á
que foi
decretada
em 2
de março
de 1881
para a
gerencia da academia real de bellas artes de Lisboa, reunida
á que
sobreveiu com o arrendamento do palacio das
Janellas Verdes,
e a
manutenção
do museu que alli existe.
Com referencia ao
já calculado
custo da
exploração geral
das cinco restantes circumscripções, do
levantamento das cartas geraes de ethnologia, de
paleoethnologia e de archeologia historica, bem como
da acquisição
dos elementos que devem constituir os referidos museus em
seis cidades
do reino,
é tambem inferior á
despeza em
que importaram as obras do
palacio das
Janellas Verdes e áquella que
foi absorvida
pela exposição de arte ornamental e decorativa, de que apenas restam uns celebres
catalogos testemunhando
a completa
ausencia de methodo que a
regeu!
Não ouso com
estas reflexões insinuar o
descuramento das bellas artes; julgo, pelo
contrario, dever-se desde
já tratar da
reorganisação das escolas e
museus, comquanto
sabido seja
que a prosperidade das bellas artes nunca
se viu raiar
em meio
de um povo mal provído de instrucção, como o
está ensinando
a antiguidade classica das
civilisações
grega e
romana, que só attingiu a sua mais
primorosa elevação artistica quando
as sciencias e as letras chegaram
a firmar
n’aquellas robustas nacionalidades
os mais
abastecidos fócos de
sabedoria; pois o sentimento
do gosto, a agudeza do
engenho e
a esthetica
da arte
não se
ensinam, nascem da cultura do entendimento, e, portanto, sem esta cultura,
faltará sempre
o principal
elemento do progresso artistico.
É, pois, por
isso que
sou levado a antepôr a utilidade dos altos estudos da
anthropologia, da paleoethnologia e da archeologia historica, como a
de todas
as mais
sciencias, á do talvez prematuro aperfeiçoamento das bellas artes; porque,
para aperfeiçoar
é primeiramente
preciso organisar
com
esclarecida sciencia, e a sciencia, quando
não existe,
ensina-se, mas
não se
póde
repentinamente vincular; e
tão convencido
está v.
ex.ª
de que
a instrucção publica é
uma inquestionavel
necessidade nacional, que
se propõe
amplamente diffundil-a, partindo
da mais
elementar
até á
mais elevada,
para crear
a que
não existe e aperfeiçoar a que não produz sensiveis
resultados.
Bem devêra eu pensar que
aos insignes
talentos, com que v. ex.ª deixa transluzir os
seus elevados meritos, não
escaparia a mui reconhecida
necessidade de instituir n’este
reino os estudos
archeologicos; mas o facto de
não os
ver especificados, como o fôram os
de bellas
artes, embora não signifique a sua exclusão, não me permittiu ficar silencioso
e trahindo as minhas mais arraigadas convicções.
Fôram estes os apontamentos,
certamente ainda incompletos, que enderecei ao
sr. ministro
da instrucção
publica, reservando-me para apresentar
os projectos dos regulamentos que taes estudos
exigem e
os orçamentos
respectivos á sua realisacão; mas
nada
d’isto me
foi pedido.
Continúo, porém, a
dedicar estes
modestissimos serviços ao meu muito
adorado paiz,
e por
isso os
ponho á
disposição de todos os governos e de todas as sociedades
scientificas nacionaes
que queiram
aproveital-os.
É este o prefacio
do quarto
volume das Antiguidades monumentaes do Algarve».
Em síntese, Estacio da Veiga foi autor de um
original e completo discurso arqueológico, no qual insistiu em valorizar,
sobremaneira, o estudo científico do objecto arqueológico em si, não pela sua
beleza ou valor material, mas por constituir uma fonte objectiva de informação.
Nesta perspectiva, contribui significativamente para a emancipação da
Arqueologia enquanto ciência, na linha dos “geólogos-arqueólogos” da Comissão
Geológica, distanciando-se, na prática e conceptualmente, dos
“arqueólogos-antiquários” e dos historiadores, em regra resistentes ao
reconhecimento de qualquer valor científico nos vestígios materiais.
Perpassa barreiras e estabelece pontes entre
diversas áreas do conhecimento, conciliando, por via de uma franca atitude
multi e transdisciplinar, as diversas fontes e contributos disponíveis para a
elaboração e comunicação de um científico discurso arqueológico.
Partindo dos artefactos e dos respectivos contextos
arqueológicos, procura complementares referências, designadamente paralelos
arqueológicos produzidos por outros investigadores nacionais e internacionais,
bem como dados históricos, valorizando as fontes clássicas e os autores
portugueses de séculos passados – “As
inúmeras citações de obras de eminentes naturalistas, fossem antropólogos ou
geólogos, a par de arqueólogos do seu tempo, mostram um espírito crítico,
sempre atento aos progressos científicos produzidos além-fronteiras, sendo hoje
difícil imaginar-se os esforços e dinheiro dispendidos para a obtenção dessas
obras, que certamente leu e releu, como se verifica pelas inúmeras citações
delas apresentadas ao longo dos seus escritos” (CARDOSO, 2006, p. 299-300).
1 Condição 3.ª
Cada volume não conterá menos de trezentas paginas de texto de corpo 12 n.º 2,
entrelinhado, formato 8.º francez grande, a fóra as estampas o desenhos
correspondentes.