A
‘História do Mês’ consiste numa iniciativa
expositiva do Centro de Interpretação de Vila do Bispo iniciada
em janeiro de 2015 onde, mensalmente, se apresenta um objeto e/ou um associado
discurso informativo. Além da divulgação, valorização e partilha de
determinados apontamentos e curiosidades da memória coletiva do território,
pretende-se, com esta iniciativa, provocar hábitos de visita ao nosso
equipamento cultural.
Na
nossa 36.ª ‘História do Mês’, a última do ano de 2017, desta feita intitulada ‘Aventura
da Arqueologia’, damos conta dos Propósitos, Métodos e
Reflexões desta Ciência Humana e Social.
Visite
o Centro de Interpretação de Vila do Bispo e aproveite a oportunidade
para explorar a 19.ª edição da Mostra de Artistas do Concelho de Vila do
Bispo.
A
AVENTURA DA ARQUEOLOGIA
Propósitos,
métodos e reflexões de uma
Ciência Humana e Social
O conhecimento
científico produzido até aos nossos dias leva-nos a crer que, num planeta com
cerca de 4,5 bilhões de anos, os primordiais hominídeos tenham surgido apenas
há 3-1 milhões de anos... o que quer dizer ontem, nas últimas horas da escala
geológica da história da própria Terra! Já os primeiros representantes do Homem
Moderno, ou seja, do ilustre Homo sapiens
(do Latim “Homem sábio”), parecem ter dado os seus pioneiros passos, em terras
de África, somente há uns escassos 200 mil anos. Na região hoje designada por “Concelho
de Vila do Bispo” sabemos que a presença humana remonta há cerca de 33 mil
anos, considerando os dados arqueológicos exumados na jazida paleolítica de
Vale de Boi.
Passados uns
orgulhosos 200 mil anos de inteligente existência, exploradas todas as geografias
da nossa morada planetária, com um pé na Lua e outro a caminho de Marte,
deparamo-nos com a inexorável e platónica fatalidade de que “só sabemos que
nada sabemos”. Afinal não existem ciências realmente
exatas nem verdades verdadeiramente absolutas, nunca existiram, muito menos no
âmbito das ciências humanas e sociais entre as quais se integra a Arqueologia.
No dealbar do
século XXI os alicerces do conhecimento científico ainda se encontram assentes
numa ‘babel’ de dúvidas, pois a Humanidade, progressivamente, tem vindo a
produzir mais perguntas que respostas.
Ainda assim, esta desoladora consciência pode transformar-se
numa vantajosa liberdade para o cientista, em particular para o arqueólogo. Enquanto
Ser Humano e indivíduo carregado de preconceitos, o arqueólogo poderá assumir e
melhor conviver com a dicotomia homem cientista vs Homem objeto, pois na Arqueologia a fronteira entre o cientista
e o objeto de estudo – o Homem – é bastante volátil. Metaforicamente, o
arqueólogo encontra-se dos dois lados do microscópio, pelo que os preconceitos
são naturalmente incontornáveis.
Mais que cientista, o arqueólogo poderá assim assumir-se como um
privilegiado produtor de narrativas, um especialista contador de histórias, construídas
segundo critérios e metodologias científicas mas necessariamente traduzidas
para a comunidade local, para os legítimos herdeiros da memória coletiva de um
determinado contexto sociocultural.
Mas afinal o que é a Arqueologia? Como surgiu? Qual a sua
missão? Quais os seus métodos?
Etimologicamente, “Arqueologia” apresenta-se como uma palavra
com origem no Grego antigo, composta pelo prefixo “arque”, que significa antigo,
seguido do sufixo “logos”, que significa ciência (arque [antigo] + logos
[ciência]), ou seja, muito genericamente Arqueologia é a ciência que estuda os
“tempos antigos”.
Com um berço científico no Positivismo do século XIX, a
Arqueologia assume-se, hoje, como uma emancipada ciência humana e social dedicada
ao estudo do Homem e das sociedades humanas entretanto extintas algures no Passado,
partindo da análise dos seus vestígios e culturas materiais – estratigrafias
culturais, artefactos, restos estruturais
das suas construções e restos orgânicos das suas atividades. Por outras
palavras, trata-se do estudo cultural da espécie humana e da sua organização
social no Espaço e ao longo do Tempo, numa evolutiva perspetiva diacrónica de
base histórica, antropológica e tecnológica.
Para o efeito, e segundo reiterados métodos científicos, a
investigação arqueológica procura todo o tipo de vestígios, os “fosseis-diretores”
deste passado humano, chamando-lhes de artefactos e ecofactos.
Tal como a Geologia, ciência gémea da Arqueologia por partilhar
um berço comum nos finais do século XIX, a investigação arqueológica adopta a
Estratigrafia como
um princípio básico, ou seja, a noção da deposição, sobreposição e sucessão do
Tempo em camadas horizontais, traduzidas como unidades cronoestratigráficas.
Esta dinâmica sobreposição de depósitos temporais, do mais antigo para o mais
recente, do mais profundo até à superfície dos solos atuais – a ‘profundidade
do Tempo’ –, é datável pela análise cronocultural dos artefactos integrados em
cada camada, em cada ‘fatia’ de Tempo.
Evidentemente que a cultura material varia conforme os tempos,
como facilmente se pode depreender das muito genéricas e abrangentes
periodizações clássicas conhecidas como “Idade da Pedra” (a Pedra Lascada no
Paleolítico e a Pedra Polida no Neolítico) e “Idade dos Metais” (Idade do
Cobre, ou Calcolítico, Idade do Bronze e Idade do Ferro). Seguindo esta lógica,
muito provavelmente os arqueólogos do futuro irão designar o período em que
vivemos como ‘Idade do Plástico’!
Se à superfície dos terrenos atuais encontramos objetos nossos
contemporâneos, familiares e facilmente reconhecíveis na sua função, por
exemplo uma tampa de garrafa de plástico, uma carica de garrafa de vidro ou, com
sorte, uma moeda de 1 euro, se escavarmos um buraco e ‘aprofundarmos o Tempo’
vamos eventualmente descobrir ‘coisas’ mais antigas, como por exemplo
fragmentos de louça, de cerâmica e, quem sabe, moedas de Escudos, de Réis ou
mesmo de Época Romana!
Outra forma de melhor compreender a relação cronológica com a
cultura material das gentes é ainda mais simples e muito familiar: ir à casa
dos nossos avós, ou de pessoas de gerações mais antigas, é de certa forma um
exercício semelhante à visita a um museu. Lá poderemos encontrar objetos já obsoletos
na sua função, entretanto ultrapassados pela evolução tecnológica. Hoje, pelo
menos em contextos europeus, já ninguém utiliza um candeeiro a petróleo no seu
quotidiano. Desde os finais do século XIX estes objetos foram progressivamente
substituídos pela iluminação elétrica. Em Portugal, tal inovação sentiu-se
sobretudo depois da II Guerra Mundial, só nos finais dos anos de 40 do século
XX. Porém, todos reconhecemos estes antiquados artefactos e sabemos exatamente
para que serviam. Se recuarmos no tempo, à Idade Média, ao Período Islâmico ou
mesmo até à Época Romana, sabemos que se utilizavam candeias, lamparinas ou
lucernas, sobretudo produzidas em cerâmica e alimentadas a azeite ou outras
gorduras vegetais e animais. Continuamos a falar de objetos similares e exatamente
com a mesma função.
Ainda que de forma redutora, podemos admitir que os arqueólogos
são especializados antiquários sem fins comerciais, que reconhecem a função de
objetos produzidos pelo Homem, atribuindo-lhes valor cultural e autores em
determinado local e momento da História.
Mas os arqueólogos também são verdadeiros detetives do Passado,
pois procuram e investigam pistas de ações e de movimentos individuais,
personalizados, de alguém, e vestígios de eventos e de cenários sociais dos
quais já não existem testemunhos diretos, ocorridos algures noutra época, de
que já não há memória viva.
Associados a uma imagem estigmatizada por românticas
personagens hollywoodescas, como Indiana Jones e Lara Croft, os arqueólogos são
ainda aventureiros “caçadores de tesouros”, encarnando o papel de pioneiros
exploradores-descobridores de paisagens culturais (Arqueologia da Paisagem),
calcorreando-as, a pé-posto, e interpretando-as à luz dos seus dias, imaginando
e compondo quadros ‘neo-realistas’ com fragmentos extraídos de esquecidos
contextos socioculturais, com verdadeiras peças do enorme e sempre incompleto
puzzle da história da existência humana.
A investigação de depósitos crono-culturais permite, assim,
abrir uma janela sobre o Passado, possibilitando um parcial entendimento de primitivos
comportamentos humanos, de arcaicas práticas sociais, de hábitos alimentares,
de gestos tecnológicos, de rituais funerários... Porém, estas estratigráficas
‘fatias de Tempo’ não são estanques, fazem parte integrante de uma narrativa
maior, de uma História incompleta. As suas interfaces são especialmente
apetecíveis para o arqueólogo historiador, pois nelas poderá identificar
diferenças materiais e propor periodizações e os momentos de ruptura cultural,
de mudança e de transformação social que definiram a evolução da Humanidade até
à atualidade. Esta abordagem historicista define a Arqueologia enquanto ciência
de relevância social – revelar o Passado para melhor compreender o Presente e
conjeturar o Futuro.
Considerando a importância histórica e material e o latente
potencial informativo contido nos depósitos de Tempo investigados pela ciência
arqueológica, os processos de escavação representam verdadeiros atos de
subtração, ações inevitavelmente destrutivas e necessariamente “lentas”, pois
exigem todo o rigor metodológico possível numa irrepetível oportunidade de
registo de realidades de outrora. Mais uma vez, a analogia do detetive
apropria-se na perfeição ao trabalho de um arqueólogo. Não se tratando de um
cenário de crime (mas até poderá ser!), um contexto arqueológico merece toda a
atenção, toda a minúcia na observação e no detalhado registo do pormenor.
Uma escavação arqueológica do século XXI já não se resume ao
desenterrar de ruínas, de antigas arquiteturas legadas por povos ou
civilizações já extintos, à descoberta de objetos antiquados, de artefactos
exóticos, de relíquias de outros tempos para alimento de vitrines em museus.
Hoje, um punhado de terra, extraído de uma determinada camada
cronoestratigráfica, é tratado como um verdadeiro tesouro, revestindo-se de um
incomensurável valor informativo. Pólenes, sementes, ossos e carvões permitem,
por exemplo, recuperar paisagens ancestrais, saber que plantas e animais
povoavam remotos cenários e compreender a evolução ambiental de determinados
contextos, até aos nossos dias. Na verdade, a Arqueologia é uma ciência do
passado que recorre a tecnologias do Futuro.
Enfim, ser arqueólogo é uma verdadeira aventura na incrível
aventura da História do Homem.
texto de Ricardo Soares
arqueólogo da Câmara
Municipal de Vila do Bispo