'A Alegoria do Abrigo' |
Numa uma área de dispersão superior a 10.000 m2, a investigação da jazida de Vale de Boi foi assim desvendando
uma importantíssima sequência crono-estratigráfica, com registos que remetem para uma
praticamente contínua presença humana, entre o Paleolítico Superior e o
Neolítico Antigo, mais precisamente, entre os 33.000 (pelo menos!) e os 6.000 anos antes do
presente (Bicho, 2004, 2006; Bicho et al., 2003; Carvalho et al., 2005; Stiner, 2003), um período no qual se marca a mais
antiga datação radiocarbónica sobre vestígios humanos (Homo sapiens) de todo o sul peninsular e onde
se distingue os traços culturais das comunidades que nestas paragens protagonizaram
a transição do Paleolítico para o Neolítico, ou seja, o Período Mesolítico. Tendo
em conta que a estratigrafia arqueológica ainda não foi integralmente escavada,
até à sua base geológica, a probabilidade de se vir a obter datações mais
antigas para este sítio é bastante elevada.
Os dados recolhidos até ao momento permitiram reconhecer as sucessivas
ocupações de grupos de caçadores-recolectores, de mais de uma dezena de
indivíduos, com uma estrutura económica complexa que inclui contactos e trocas inter-regionais,
a longas distâncias, patentes na ocorrência de matérias-primas exóticas, importadas
de distâncias superiores aos 1000 km, o que demonstra a amplitude de circulação
destas sociedades, convencionalmente tidas como “primitivas”.
A escolha deste local para a implantação de comunidades de
caçadores-recolectores-marisqueiros deverá relacionar-se com o facto de, a cerca
de 100 metros, ter ali existido uma lagoa ligada ao mar (na actual Boca do Rio), que funcionaria como área
de pesca, com fácil acesso à costa, e pólo de atracção de animais diversos. A
partir do abrigo sob pala rochosa, formada num expressivo afloramento calcário, num ponto elevado que coroa a vertente esquerda do vale,
seria possível dominar visualmente a caça que saciava a sede nas águas
subjacentes.
Os vestígios arqueológicos concentram-se sob a pala do
abrigo, parcialmente colapsada na actualidade, estendendo-se pelo declive, em áreas de despejo de lixos que oferecem aos arqueólogos preciosas
informações acerca dos hábitos quotidianos destes nossos antepassados. Mais abaixo, numa ligeira plataforma da vertente, as escavações revelaram uma área de maior concentração de vestígios e uma longa diacronia que termina superiormente nos 6.000 anos, ou seja, no dealbar do Neolítico Antigo e das primeiras sociedades de pastores-agricultores.
De entre a abundante e diversificada informação exumada em
Vale de Boi, destaca-se a excepcional preservação orgânica dos ecofactos (ossos
e conchas), uma tecnicamente impressionante colecção de pontas de seta, especialmente as do Período Solutrense (com 20.000 anos), e um interessante
conjunto de artefactos de adorno e de matriz artística, designadamente
produzidos sobre osso e conchas perfuradas, utilizadas como contas de colar.
Mas, até à data, o mais excepcional elemento artefactual trazido à luz nas escavações
foi, de longe, um interessante objecto de arte móvel: uma rara placa de xisto, com menos de
20 cm de largura, gravada com um conjunto de desenhos interpretados como representações de três auroques, ou de um auroque em movimento (uma espécie de
grande boi selvagem, entretanto extinta). Esta placa poderá ser interpretada como um "objecto de bolso", eventualmente um "souvenir" trazido de outras paragens, utilizado em Vale de Boi enquanto modelo para eventuais réplicas, o que explicaria, assim, as outras placas identificadas e que apresentam apenas algumas inexpressivas garatujas.
Uma vez mais, surgem claros indicadores da importância do
marisqueio para as economias locais. Uma parte substancial da dieta das gentes
de Vale de Boi baseou-se no consumo de recursos marinhos, uma constatação relativamente
excepcional, pois não tem sido essa a regra verificada em diversos sítios
arqueológicos paleolíticos estudados um pouco por todo o mundo, onde, por
comparação, a caça domina largamente.
Neste sítio foram recuperados abundantes restos de conchas,
de diversas espécies: lapa, mexilhão, vieira, berbigão, amêijoas, caracóis
marinhos e de água doce, búzios e percebes. A actividade pesqueira foi residualmente
detectada pela ocorrência de vértebras de cação. No que respeita à caça, foram
registados restos ósseos de coelho, lebre, raposa, cabra, javali, perdiz e
águia-real. Interessante será verificar que, juntamente com estas espécies
selvagens, relativamente vulgares, foram isoladas outras, já não existentes na
região, como o veado, o lobo, o urso, o lince, o burro, o cavalo e o auroque;
mas também algumas, mais improváveis, como o golfinho (ou baleia) e o leão! Relativamente
aos ossos de águia-real, devem remeter para a utilização de penas enquanto
elementos de adorno ou para guias de flechas. Quanto ao leão, ao lince, à raposa e ao lobo, as suas peles seriam certamente bem aproveitadas. Os cetáceos (golfinhos e baleias) deveriam dar à costa, sendo "postumamente" aproveitados como excepcionais fontes de matéria-prima óssea.
Analisados os vestígios faunísticos de Vale de Boi, salta à
vista a ampla diversidade de recursos alimentares explorados por estas
comunidades paleolíticas, obtidos no marisqueio, na pesca e na caça, sendo ainda
e naturalmente de admitir a recolecção de vegetais e de frutos silvestres, ecofactos
difíceis de detectar pois os seus indícios raramente sobrevivem para o registo
arqueológico.
Para fechar este já farto menu, em jeito de “sobremesa”, não
se reserva uma “cereja no topo de um bolo”, mas sim... dois batráquios. Estes
nossos antepassados eram realmente “bons garfos”... até se deliciavam com
sapos... as coisas que os arqueólogos descobrem!
Os estudos paleoambientais nestas jazidas permitem
reconstituir as paisagens de épocas ancestrais, designadamente a sua fauna e a
sua flora, num momento em que o ambiente começava a estabilizar no sentido de
um quadro para nós mais familiar. Os dados paleovegetais colectados em Vale de
Boi, mas também no concheiro da Pedra
das Gaivotas, em Sagres (Figueiral e
Carvalho, 2006), e no concheiro do Castelejo (Soares e Silva, 2004), revelaram a presença do
zambujeiro, como coberto arbóreo mais frequente na Costa de Sagres durante o
Mesolítico e o Neolítico Antigo, mas também do sobreiro, do zimbro,
da aroeira, do medronheiro e da cornalheira – um coberto vegetal muito
semelhante ao actual, pelo menos nas áreas menos afectadas pela acção agrícola.
A agenda da investigação para a jazida de Vale de Boi inclui,
para as próximas campanhas de escavação, um dos temas mais “populares” do
panorama arqueológico internacional dos últimos anos – a verificação de uma
muito provável presença do Homem de Neandertal (1) nestas paragens. Trata-se de uma questão de grande interesse e pertinência pois,
sabe-se, que o extremo sudoeste da Península Ibérica terá constituído um dos
últimos redutos continentais para esta espécie contemporânea dos primeiros Homo sapiens, o
Homem Moderno... nós! A identificação e estudo de vestígios Neandertais poderá
clarificar a problemática do seu desaparecimento: por assimilação genética pela
nossa espécie, ou extinção por pressão humana?
(1) O Homem de Neandertal (Homo neanderthalensis) é uma espécie extinta do género Homo, que
habitou a Europa e algumas áreas do oeste asiático entre 200.000 anos e aproximadamente 28.000 anos atrás, tendo coexistido com a nossa espécie, os Homo sapiens. Em
Portugal encontram-se registadas algumas jazidas que atestam a sua presença
neste extremo continental.
Ilustrações Vítor Fragoso