O texto que se segue consiste num resumo produzido a partir da leitura da Tese de Mestrado de Jorge Correia (UALG), acerca da jazida arqueológica do Catalão, um interessante e raro sítio enquadrável na transição do Calcolítico (vulgo Idade do Cobre) para a Idade do Bronze.
Introdução
O
local designado por Catalão é mencionado pela primeira vez no Levantamento Arqueológico de Vila do Bispo,
onde se regista a ocorrência de evidências, nomeadamente “(…) indústrias sobre seixos e sobre lascas, algumas de tipo ‘mirense’, assim como artefactos de pedra polida (…)” (Gomes e Silva, 1987:59), ocorridas
ao longo de vários períodos.
Entre
1996 e 2001 decorreu o projecto A Ocupação Humana Paleolítica do Algarve,
sob a orientação e responsabilidade do Nuno Bicho, que permitiu localizar
algumas dezenas de sítios arqueológicos, nomeadamente o Catalão, cujos
contextos frequentemente revelaram economias relacionadas com o litoral.
O
sítio do Catalão 1 foi detectado em 1998 através da presença de variados
vestígios, nomeadamente fragmentos de cerâmica, valvas de moluscos marinhos e
de um “machado mirense” localizados no rebordo da cratera resultante da
extracção de areia, que consequentemente, terá destruído parte significativa da
jazida arqueológica (Bicho, 2000).
Posteriormente
e em sequência do projecto supramencionado, desenvolveram-se outros dois,
respectivamente sob a orientação de Professor Doutor Nuno Bicho e de Doutor
António Faustino Carvalho, (A Importância dos Recursos Aquáticos no Paleolítico do Algarve e O
Processo de Neolitização do
Algarve). No segundo caso os objectivos assentaram sobretudo na
investigação dos contextos conquíferos dos sítios detectados, e foi no âmbito deste
que se efectuaram os trabalhos de escavação relativos ao sítio do Catalão.
Localização
O
sítio arqueológico, denominado Catalão 1, localiza-se na região SW do Algarve,
bem exposta ao clima francamente Atlântico. Situa-se geograficamente no local
conhecido por “Cruz da Rata”, Freguesia de Sagres, Concelho de Vila do Bispo,
Distrito de Faro, a uma cota de 95 metros.
Encontra-se
a cerca de 5,2 Km, para sudoeste da vila de Vila do Bispo e dista de 2 e 4,2 Km da
costa W e S respectivamente.
Os trabalhos Arqueológicos
O
sítio do Catalão 1 encontra-se implantado num antigo areeiro que na consequência
da sua exploração destruiu uma parte significativa da jazida arqueológica. Do
corte, exposto pela acção daquela actividade extractiva, foi possível recolher
restos de cerâmica, valvas de moluscos marinhos (datados pelo radiocarbono de
finais do III milénio a. C.) e vários machados mirenses. As evidências indicam
que a ocupação teve lugar no sopé da vertente Sul da duna.
As
escavações realizaram-se, sob a direcção de António Faustino Carvalho, entre 19
e 22 de Agosto de 2002, após a observação de que o sítio se encontrava em
processo de erosão, sendo o registo do seu contexto e a urgente salvaguarda do
sítio da erosão subsequente uma prioridade.
Na
limpeza sumária de corte efectuada anteriormente por Nuno Bicho recolheu-se um
conjunto de conchas que resultaram numa datação absoluta de cerca de 3.600 BP
(cerca de 1.900 cal AC). Esta cronologia insere o Catalão no período de
transição entre o Calcolítico e a Idade do Bronze.
A questão “Mirense”
Podemos
concluir, confirmando, segundo os novos dados retirados do Catalão, que o
utensílio (machado mirense) que caracterizava a “cultura mirense” não se
encontra exclusivamente associado a essa cultura, uma vez que a sua utilização perdura,
efectivamente, até ao início da Idade do Bronze. Desta forma deixa de fazer
sentido pensar nos machados mirenses como fósseis-directores do Mirense.
Interpretações
As evidências arqueológicas, relativas ao
Catalão, são efectivamente bastante reduzidas, o que dificulta, de certa forma,
a formulação de uma interpretação mais aprofundada e abrangente do sítio. Sem
dúvida que este facto se deve em particular à destruição quase total do sítio devido
à exploração do areeiro. Podemos, contudo, e com base nos escassos vestígios,
tentar decifrar qual o seu papel em termos económicos e sociais.
No que respeita à sua funcionalidade podemos,
efectivamente, inferir que se trata de um acampamento funcionalmente
especializado, que serviu como local de apoio à exploração dos recursos costeiros,
nomeadamente o marisqueio, possivelmente a pesca, como testemunha a presença de
um possível peso de rede. O aprovisionamento de sílex algarvio também pode ter
sido um dos factores locativos para o Catalão, uma vez que essa matéria-prima
se localiza a menos de 3 km do Catalão.
As prováveis funções de que foi palco o
acampamento terão, de certa forma, estado relacionadas com as actividades inerentes
à exploração dos vários recursos, como a preparação dos vários equipamentos
(por ex. fabrico de utensílios líticos, arranjo de redes e processamento de
alimentos entre outros). O processamento no local dos recursos alimentares tem
como fundamento a presença de duas estruturas de combustão e recipientes de
cerâmica, verosimilmente utilizados para tal fim. A presença de um suposto peso
de rede, leva a crer que poderá ter ocorrido naquele acampamento arranjos e
preparações de redes de pesca.
Relativamente à ocupação do sítio em termos
de duração e altura do ano parece, segundo as evidências, revelar uma ou mais
curtas estadias. Esta ilação fundamenta-se, em primeiro lugar nas características
do sítio, efectivamente por se tratar de um acampamento especializado sem
estruturas arquitectónicas de habitação; em segundo lugar na presença de duas
estruturas de combustão, possivelmente relacionadas com uma ou duas estadias no
sítio; em terceiro lugar, a quantidade reduzida de restos faunísticos unicamente
de natureza malacológica, revela refeições pouco numerosas. Não podendo ser
descartada a hipótese de haver outros alimentos de natureza mais perecível,
como por exemplo carne seca e legumes, entre outros, em último lugar, a
reduzida quantidade de artefactos, tanto em termos quantitativos como em termos
de diversificação, anuncia um sítio especializado na recolecção de marisqueio e
pesca, actividades que se praticavam, por hipótese, sazonalmente. Estas
actividades poderiam ocorrer a partir da Primavera e durante o Verão, visto que
estas estações se manifestam como períodos climatéricos mais propícios a estas
actividades.
A diversidade e quantidade de recursos
secundários, nomeadamente agrícolas, que possivelmente se encontravam disponíveis
dentro de uma área com esta extensão seriam de certa forma vitais para a
sobrevivência deste grupo. O acesso a tais recursos, possivelmente, seria efectuado
recorrendo a embarcações, visto que durante a Idade do Bronze o conhecimento e
recurso à arte de navegar constituía um papel fundamental para comunidades cuja
relação com os meios aquáticos era fundamental para a sua sobrevivência, tal
como é evidenciado por Van de Noort, et
al., (1999), segundo os vestígios de uma embarcação na praia de Kilnsea
(Yorkshire, Inglaterra), datado de 1870-1670 BC. Este meio de transporte terá
sido fundamental em termos económicos, visto que diminuía o tempo necessário
para efectuar a ligação entre a costa e o interior, utilizando as várias vias
fluviais, nomeadamente o Rio Arade, o Rio de Alvor e a Ribeira de Aljezur,
permitindo trocas de bens entre outras comunidades, possivelmente com Alcalar e
Corte Cabreira.
De certa forma, as evidências arqueológicas
do Catalão revelam um grupo, aparentemente pouco ou nada complexo, ilação
baseada na ausência de vestígios denunciadores de actividades de natureza
ritual e hierarquizante. Com este facto podemos propor a tese de que existiram
paralelamente às comunidades contemporâneas, de certa forma mais distintas e
complexas, como revelam as evidências arqueológicas revistas nos capítulos
anteriores, realidades diversificadas e estruturadas sobre bases
económico-sociais diferentes e aparentemente menos complexas durante a transição
do Calcolítico final e o Bronze inicial.
O acampamento do Catalão segundo as suas
características terá possivelmente, por um lado, sido frequentado por
indivíduos oriundos de povoados localizados no hinterland e sustentados economicamente pela agropecuária. Estes
indivíduos terão explorado os recursos marinhos sazonalmente de modo a
complementar os recursos explorados anualmente pela comunidade. Por outro lado,
podemos estar perante um grupo que possui identidade cultural própria, adoptada
ao meio marinho, e que explora estes recursos ao longo da faixa costeira de
modo permanente. Estes recursos terão possivelmente servido como moeda de troca
por outros bens entre este grupo e outras comunidades localizadas mais no
interior.
Relativamente ao aspecto locativo é interessante
observar que o Catalão se encontra a cerca de 2km da costa, modelo ou estratégia
que parece divergir dos padrões verificados noutros sítios especializados,
nomeadamente uma maior proximidade da fonte dos recursos, tal como acontece nos
sítios estudados por Silva e Soares (1997), do qual são exemplos Montes Baixos,
Oliveirinha (Bronze Médio), Palheirão Furado (Bronze Antigo), Vila Nova de
Milfontes – ETAR (Calcolítico). Todos estes sítios se encontram perto das
arribas com alguma proximidade dos recursos marinhos explorados.
É justo, com base nesta observação,
questionar se realmente este acampamento estava unicamente viabilizado para a
exploração do marisco e pesca ou terá havido outro recurso mais próximo de
maior importância e cujas evidências não surgiram nos registos arqueológicos?
A cerca de 100 m do Catalão localiza-se uma
necrópole, Catalão 2, de onde fora exumado um recipiente cerâmico. A idêntica composição
das pastas provenientes dos dois sítios levanta a hipótese de estes terem sido
utilizados pela mesma comunidade ou por grupos idênticos. De certa forma a
presença desta necrópole e a existência de terrenos com solos de boa aptidão
agrícola, ainda hoje agricultados, leva-me a supor, hipoteticamente, que poderá
ter existido um habitat permanente localizado nas proximidades. É evidente que
estas hipóteses só poderão ser fundamentadas e provadas recorrendo a futuros
trabalhos de prospecção no terreno.
Concluídas as análises possíveis a um sítio
com estas características, é fundamental deixar uma nota final no que diz
respeito a muitos sítios que aparentemente não revelam grandes exuberâncias
materiais e que por esta razão ficam por estudar por parte da grande maioria
dos investigadores, mas que poderão ainda vir a revelar-se. Este foi o caso do
Catalão que, após um estudo aprofundado, revelou evidências importantes que
vieram preencher hiatos e consolidar teses que careciam de dados sustentáveis
na investigação arqueológica.